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“A longa indigestão” – Luis Fernando Verissimo

Extraído do jornal O Globo:

Quando o Brizola se convenceu de que não chegaria à Presidência da República, consolou-se com uma sentença: a elite brasileira teria que engolir um sapo barbudo em seu lugar. Quem estava vivo e consciente na época se lembra do quase pânico provocado pela perspectiva do Lula no poder. Oitocentos mil empresários fugiriam do país. Ninguém sabia ao certo o destino da sua prataria, nem de suas cabeças. A ideia de engolir um sapo, ainda mais um sapo com uma ameaçadora barba cubana, era revoltante. Mas, fazer o quê? Lula foi eleito legalmente, o sapo foi deglutido e empossado. E o pior não aconteceu. Poucos empresários emigraram e os que ficaram, principalmente do setor financeiro, não se arrependeram. E ninguém foi guilhotinado.

É verdade que o PT tratou de tornar-se mais palatável para ser eleito. Prometeu seguir o modelo econômico vigente, com alguns ajustes na área social para honrar seu passado e seus compromissos de campanha, mas sem fazer loucuras. E o sapo barbudo desceu pela goela da nação com a suavidade possível. Já a sua digestão foi outra coisa. Não se muda de dieta tão radicalmente sem consequências ao menos gástricas. Pela primeira vez o Brasil tinha na presidência um ex-operário, vindo das lutas sindicais, que errava a concordância verbal mas mobilizava a massa. Com todas as suas precavidas concessões ao status historicamente quo, o PT não deixava de representar a “classe perigosa”, como a nobreza francesa chamava os pobres antes da Revolução, no poder, o que também não ajudava o metabolismo. A resistência do patriciado brasileiro ao PT tem várias causas: diferenças ideológicas, interesses contrariados, medo, a própria arrogância do partido no governo e suas quedas na corrupção, e — especialmente inadmissíveis — os seus sucessos: distribuição de renda, políticas sociais, desemprego baixo etc. Mas o ódio ao PT só se explica como má digestão.

Doze anos de indigestão: é compreensível a irritação causada pela eleição de mais quatro anos de PT no governo e a continuação da praga do Brizola. Os que se manifestam contra uma suposta fraude no pleito apertado e pedem o impeachment dos vencedores estão exercendo o direito de todo perdedor, o de espernear. Só achei curioso ver, desfilando numa manifestação na Avenida Paulista, uma faixa que pedia a volta dos militares ao poder. Teoricamente, não é preciso mais de três pessoas para fazer e carregar uma faixa daquelas: uma para pintá-la e duas para segurá-la. Fiquei pensando em quantas pessoas no desfile além das três hipotéticas concordavam que outra ditadura militar é preferível ao PT no governo. Talvez ninguém, talvez a maioria. Nunca se sabe o efeito da má digestão num organismo.

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“Projeto pioneiro apresenta a terapêutica dos índios Huni Kuin”, por Bolívar Torres

Extraído do site do jornal O Globo:

RIO — Espalhado pelo estado do Acre, sul do Amazonas e Peru, o povo indígena Huni Kuin sempre encontrou a cura na natureza, graças à sua estreita ligação com a floresta e seu conhecimento milenar das plantas. Cultivadas em seus jardins medicinais, diferentes espécies tratam enfermidades físicas e espirituais. Soluções naturais que servem tanto para acabar com uma dor de dente quanto para ajudar a se concentrar na pesca e na caça, ou ainda dar um fim à má sorte de homens e cachorros.

Mais de 100 espécies desta terapêutica estão agora apresentadas em textos e imagens no recém-lançado “Una Isi Kayawa — Livro da cura Huni Kuî do Rio Jordão” (Editora Dantes, 260 páginas), organizado pelos pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru e o etnobotânico Alexandre Quinet, pesquisador do Jardim Botânico do Rio (uma seleção de fotos de Camilla Coutinho feitas para a obras estão na mostra “O sonho que cura”, exibida no Parque Lage). A publicação era um sonho antigo do pajé Manduca, morto em 2011: perpetuar no registro impresso a cultura medicinal do seu povo, antes restrita à transmissão oral. Fruto de um longo processo, que incluiu cinco expedições ao Rio Jordão (Acre), entrevistas com pajés, coletas e catalogação de material botânico, além de residências de tradutores no Rio de Janeiro, o projeto é uma troca inédita de experiências entre o Centro Nacional de Conservação da Flora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico e os Huni Kuin. Incorpora a aplicação da pesquisa técnico-científica do “homem branco” ao conhecimento das culturas tradicionais dos índios.

O registro das plantas da terapêutica indígena segue uma divisão mítica de quatro grupos (Dau, Inani, Inu, Banu). A apresentação das concepções espirituais dos Huni Kuin (também conhecidos como Kaxinawás) é essencial — para eles, não há uma separação clara entre ciência e religião. A aplicação de ervas é acompanhadas por cantos, e o processo de cura envolve uma intrincada relação com os outros seres vivos.

— A ligação do homem com as plantas vem desde os primórdios, quando a busca da cura das doenças estava diretamente relacionada com a crença num poder das potestades na natureza, e, em particular, no mundo vegetal — observa Quinet. — Os sacerdotes foram os mais remotos alquimistas, que guardavam as observações dos usos das plantas medicinais. Culturas tão distintas, como a dos índios Huni Kuin, tinham uma concepção mágica das plantas, sempre relacionadas com os seres encantados da natureza, que compõem a sua visão teogônica do mundo.

No mundo dos Huni Kuin, a influência das divindades pode se manifestar positivamente — no sucesso nas caçadas, por exemplo — ou negativamente — no sofrimento com enfermidades. Parte da cura depende de um comportamento sustentável, já que as relações ecológicas influenciam na saúde dos homens, criando um ciclo de reação e vingança dos espíritos de plantas e animais. Alimentar-se de filhotes e danificá-los durante seu esquartejamento causa problemas de saúde ao caçador. Comer filhote de capivara, por exemplo, pode provocar dores repentinas e epilepsia (doenças tratadas por eles com banhos de folhas de amé maku txakiwã, ou rutaceae na nomenclatura tradicional).

Segundo os organizadores do livro, não há oposição entre o caráter “mágico” do conhecimento Huni Kuin e a abordagem científica convencional: pajés e cientistas operam em níveis de consciência diferentes, mas obtêm o mesmo conhecimento das espécies. Mais do que um aval da botânica ocidental ao conhecimento indígena, entretanto, o projeto é um diálogo entre duas inteligências complementares, opina a editora Anna Dantes.

— Para os Huni Kuin, as plantas são sagradas; é uma visão que se perdeu no Ocidente, mas que permanece nas culturas nativas — explica. — Vejo que, em vários lugares do Ocidente, busca-se recuperar esta conexão com o mundo vegetal, o entendimento de que nós somos a natureza.

Traduzir o complexo conhecimento dos Huni Kuin foi um desafio para a Anna. Em 2008, ela editou o “Gabinete de curiosidades de Domênico Vandelli”, que apresentava o universo do naturalista italiano do século XVIII por um viés mais iluminista. Já a edição do “Livro da cura”, que conta ainda com fotografias de Gabriel Rosa e do artista plástico Ernesto Neto, entre outros, se guia esteticamente pelos cadernos e desenhos dos pajés. Experimenta uma diagramação de janelas e proporções livres e orgânicas, além de usar um papel feito de plástico reciclado, que o torna resistente às condições úmidas da floresta, onde deverá ser distribuído.

— Fomos fiéis ao conceito de “livro vivo” idealizado por Manduca: um instrumento dinâmico, de aprendizado coletivo, que transforma os envolvidos — conta Anna. — As fotos tinham que ajudar o taxonomista a identificar as plantas, mas ao mesmo tempo apresentá-las numa linguagem com a qual os aprendizes de pajé se identificassem. Os Huni Kuin estão sempre atualizando sua cultura, e eles queriam mostrar como o conhecimento da floresta pode ser mais valioso que outros tipos de exploração, como a pecuária.

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“A exaltação de um factoide” – Marcelo Freixo

Texto de Marcelo Freixo publicado no jornal O Globo de 18 de fevereiro de 2014:

Pela terceira vez em menos de uma semana, O GLOBO me cita em seus editoriais. As diferenças do texto publicado ontem em relação aos demais são o tom menos arrogante e o alvo. Após a péssima repercussão das tentativas de associar a morte do cinegrafista Santiago Andrade a mim, o jornal assume postura mais cuidadosa, até porque o objetivo é explicar a cobertura da tragédia aos seus leitores.

Estranho é O GLOBO não demonstrar tamanho ímpeto editorial quando o assunto é, por exemplo, a comprovada ligação entre o ex-governador em exercício Sérgio Cabral e o empreiteiro Fernando Cavendish. Quantos editoriais foram dedicados ao fato de a empresa de advocacia da primeira-dama, Adriana Ancelmo, ter contratos com concessionárias estaduais? Quantos textos foram escritos sobre as relações entre o governador e Eike Batista?

Vamos fazer uma rápida retrospectiva. No editorial do dia 12 de fevereiro, o jornal me trata como inimigo da democracia. Achei interessante o grupo tocar no assunto. Afinal, no próximo 1º de abril, o golpe militar completa 50 anos e a empresa deve ter histórias palpitantes para contar.

Dois dias depois, o jornal afirma que meu gabinete tem comprovada proximidade com os black blocs. Comprovada proximidade? Creio que o manual de redação do grupo é mais criterioso do que levam a crer seus editoriais. A comoção provocada pela morte do cinegrafista Santiago Andrade não pode ser usada como instrumento de difamação.

Depois de tanta ferocidade, O GLOBO tenta justificar a série de matérias produzidas, com grande destaque, sobre a minha suposta ligação com os responsáveis pelo assassinato de Santiago. Num tom professoral e oportunamente sóbrio, o editorial “O dever de um jornal”, publicado ontem, se arrisca em novos malabarismos.

Primeiro, O GLOBO tenta justificar a manchete do dia 10 de fevereiro, que alardeia minha relação com os acusados, lembrando que a conversa telefônica entre o advogado Jonas Tadeu Nunes e a ativista Elisa Quadros foi registrada na 17ª DP (São Cristóvão). Logo, a existência do documento baseado num “disse me disse” seria suficiente para que uma denúncia grave como esta fosse divulgada. Tudo bem, se o argumento parece tão óbvio ululante e irrefutável para o grupo, por que os jornais “Folha de S.Paulo” e “O Dia”, por exemplo, não se comportaram da mesma forma e nada escreveram sobre o episódio? Então, a postura é, sim, controversa.

O tal Termo de Declaração registrado na delegacia foi produzido de forma irresponsável por um advogado extremamente suspeito e divulgado com destaque, no mínimo, inconsequente. Vejam que estranho: a conversa que suscitou as acusações ocorreu entre Jonas Tadeu Nunes e Elisa Quadros, como o próprio advogado disse, mas o documento foi assinado pelo estagiário Marcelo Mattoso. Além disso, o delegado Maurício Luciano não teve acesso ao conteúdo da conversa. Por que ele não passou o telefone ao delegado? Por que não pôs a ligação no viva-voz? Ou seja, o Termo de Declaração, grande “prova” do GLOBO, é frágil por ter sido produzido sem qualquer cuidado.

Até aquele momento, ainda não sabíamos que Jonas Tadeu Nunes já fora condenado por danos morais, enriquecimento sem justificativa, e danos morais e materiais em três processos distintos — não vi O GLOBO destacar isso durante a cobertura. Apesar disso, sua atitude, naquele dia 9 de fevereiro, é digna de estranheza. Jonas Tadeu Nunes não agiu como advogado nem como defensor dos interesses de seu cliente ao pegar o Termo de Declaração, imediatamente após o seu registro, e entregar nas mãos de uma repórter da TV Globo.

Por que O GLOBO não se interessa tanto pela conduta tão controversa e suspeita do advogado, como o faz quando ele dirige acusações sem provas contra mim? Enquanto veículos e colunistas de outros jornais, como Jânio de Freitas, da “Folha de S.Paulo”, acham tudo muito estranho, Jonas Tadeu Nunes reina sob os holofotes globais e leiloa informações. Quando acusa, o advogado recebe mais destaque que o delegado, responsável pelo inquérito.

O autor do editorial mente ao escrever que eu afirmei não saber de nada ao ser procurado por Artur, da equipe de produção da emissora, naquele mesmo dia. Em momento algum neguei ter falado com Elisa Quadros ao telefone. Ela me ligou exclusivamente para relatar que temia a possibilidade de Fábio Raposo ser torturado no presídio. Eu falei que isso não aconteceria e desliguei. Sou presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e dezenas de pessoas me procuram para fazer denúncias.

Também não criei obstáculos para dar entrevista. Pelo contrário, dar entrevistas é o que mais tenho feito nestes últimos dias. Só pedi que o tal documento me fosse encaminhado antes. Afinal, não posso falar sobre algo cujo conteúdo desconheço. O jornal cumpriu sua obrigação de me ouvir, mas foi leviano ao publicar uma manchete baseada em “provas” extremamente frágeis. No fim da chamada de capa, o fatal: “O parlamentar nega.”

O GLOBO insiste em dizer que foi imparcial e comedido ao tratar do assunto durante a semana. Não foi. Basta ler os editoriais publicados e citados aqui. Como não havia provas e mais informações para me associar a esta tragédia, os ataques saíram dos espaços de notícia para os de Opinião. Não me acho acima do bem e do mal, como insinuou o jornal, numa tentativa de desqualificar minha indignação. Mas não vou titubear em defender minha trajetória ante acusações estapafúrdias.

Agora, o jornal tenta se esconder sob o manto da “missão jornalística” para justificar o noticiário desmedido e leviano dirigido contra mim e o PSOL. O papel nobre que O GLOBO atribuiu a si mesmo ontem, numa linguagem tão prudente, é mais uma tentativa de subestimar a inteligência de seus leitores.

Se não houvesse tanta indignação social e manifestações de solidariedade a mim — inclusive de jornalistas da própria Rede Globo —, essa autocrítica mambembe sequer teria sido feita. Pedir desculpas é um gesto que exige grandeza.

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“As biografias, o livrinho e a lesma lerda” – Ana Maria Machado

Artigo de Ana Maria Machado, presidente da Academia Brasileira de Letras, sobre a polêmica das biografias. O texto foi publicado no site do jornal O Globo de 23 de outubro de 2013 [via Paulo Roberto Pires]:

Não dá para achar que a democracia tem de escolher entre censura prévia e difamação, obrigando a engolir uma para evitar a outra. Ou entre liberdade de expressão e respeito à privacidade e à honra pessoal.

Não posso crer que pessoas inteligentes achem que artistas que encarnaram o melhor de nosso espírito na resistência à ditadura tenham virado censores truculentos, ou estejam a fim de tirar casquinha em ganhos alheios. Tampouco me convence que gente do calibre moral de Chico Buarque defenda mesmo que a História se baseie em biografias que devam ser aprovadas pelo biografado ou herdeiros, ou lhes pagar para poder difamar. Não faz sentido. A energia gasta nessa discussão está gerando bastante calor, mas pouca luz.

Nessa hora lembro de meu pai. E do livrinho, como chamava a Constituição. Quando eu era criança, lá em casa falava-se muito em consultar o livrinho. Proponho o mesmo: vamos ao livrinho.

Foi o que o SNEL fez, com sua Adin sobre artigos do Código Penal que estão servindo para que nossa paquidérmica Justiça seja veloz como a lebre na proibição de livros, enquanto, como a tartaruga, deixa prescrever casos de difamação pela mídia, após investigações que se arrastam como lesmas lerdas. O SNEL resolveu perguntar ao STF se isso está certo. Afinal, o que diz o livrinho?

Não sou jurista. Só consulto o livrinho: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” Tudo junto, num artigo só. Então, como não se discute o direito à reparação?

Se uma revista semanal publicar uma mentira – como uma denúncia contra um inocente – no dia seguinte os jornais repercutem, depois o telejornal repete, mostra portas fechadas à guisa de comprovação, afirma que o acusado não foi encontrado. Após meses sem que a investigação encontre qualquer indício, o processo pode ser arquivado. Nunca o autor da denúncia terá de explicar de onde ela saiu: o sigilo da fonte é sagrado. Ninguém conhecerá os interesses escusos de quem plantou a acusação. O cidadão pode ser inocentado. Mas já estará destroçado e poucos saberão de sua comprovada vida sem mácula. O interesse jornalístico na defesa é menor. A pecha fica para sempre. Um pedido de reparação tem de correr onde se publicou o texto, uma cidade grande, com muitos processos a serem examinados por poucos juízes. Não dá tempo. Prescreve antes. Sempre a lesma lerda . Não se respeita o direito à reparação, tão sagrado quanto o da liberdade de expressão ou da privacidade.

O exemplo não envolve a intimidade de artistas. Mas o mecanismo é igual. E mais um bicho entra em cena: gato escaldado tem medo de água fria. Os gatos setentões querem se defender de biografias não autorizadas. Já foram chamuscados por revistas de fofocas, entrevistas deturpadas, declarações truncadas, irresponsabilidade, falta de profissionalismo. Queimados por repórteres, descontam nos biógrafos. Afinal, a meio caminho entre jornalismo e literatura.

Que tal exigir mecanismos de reparação eficazes? Como manda o livrinho. Não por antecipação. Mas pela rápida punição da ofensa. Tem efeito didático. Duvido que os abusos continuem se os ofensores tiverem de pagar caro por eles. Mas então a polêmica deve ir mais fundo e constatar que a Constituição não distingue os abusos praticados nas biografias dos veiculados na mídia. O que valer para um tipo de texto tem de valer para outro.

O que está em jogo vai muito além de bisbilhotices ou das manias de um Rei.

Ana Maria Machado é escritora e presidente da Academia Brasileira de Letras

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“Milton: a música”, de Caetano Veloso

Coluna de Caetano Veloso publicada no jornal O Globo no dia 6 de outubro de 2013:

Recebi um livro que me arrebatou. Trata-se de “A música de Milton Nascimento”, escrito por Chico Amaral. Muitas das ideias a que, ao longo dos anos, esse artista excepcional tem me levado aparecem de modo articulado pelo autor, coisa que a mim mesmo não seria possível. É preciso ser muitíssimo mais músico do que sou para captar com consciência técnica as peculiaridades harmônicas e rítmicas que fazem o mundo único de Milton aflorar em timbres e formas. Quando canto que a bossa nova é foda, estou me referindo à explosão do João Gilberto dos LPs “Chega de saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” e “João Gilberto”, com as composições de Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal; as letras de Vinicius, de Bôscoli, do próprio Lyra ou do próprio Tom; as releituras de sambas de Caymmi, Ary, Bid & Marçal, Lauro Maia; os arranjos econômicos e perfeitamente elegantes de Jobim (e os de Walter Wanderley em parte do terceiro disco): foi o Big Bang. As bandas jazzísticas que apareceram depois, sobretudo no Beco das Garrafas, sendo, a meus ouvidos, apenas uma pequena regressão virtuosística. Em suma, a “bossa nova” de que falo no verso desaforado não é um gênero mas um acontecimento. Respeitei seus desdobramentos mas nunca os pude pôr no mesmo nível do ápice revolucionário. O aparecimento de Milton, coincidindo cronologicamente com o do grupo tropicalista, veio a mudar esse esquema. Ou pelo menos se apresentou como algo mais que relevante (além de intenso e genuíno) nascido de uma relação diferente com essa história: Milton desenvolveu uma visão da música que dava mais atenção aos floreios do Tamba Trio do que ao rigor fundador de João.

Claro que Milton não era o único brasileiro a ser mais atraído por aqueles desdobramentos. Conheci dezenas de amantes da música que, no início dos anos 60, tendiam mais para o culto dos Zimbos e Tambas, do Donato do “Muito à vontade” — e das canções de Edu, fundamente informadas pela riqueza harmônica da bossa nova mas saindo para modos do Nordeste e para paisagens sonoras mais grandiosas. Mas Milton fez de tudo isso um mundo novo. Eu próprio, admirador de Edu (apesar de manter fidelidade estética e crítica ao minimalismo do Jobim de João), compus, em 1964, a canção “Boa palavra”, que o próprio Milton, anos depois, me disse ter sempre amado. Mas não só eu não tinha adesão estética total ao que se insinuava nessa segunda fase do momento bossanovista da nossa canção: faltava-me o talento musical para produzir algo orgânico. Terminei, no apego à exigência joãogilbertiana, indo para o ruidismo roqueiro e para a mirada pop da produção cancional.

Muito mais musical do que eu, Gil percebeu a força e o significado de Milton. Bastou-lhe ouvi-lo cantar a música de Baden no festival da TV Excelsior. Quando, pouco depois, ele tomou conhecimento das composições do mineiro, era-lhe evidente que Milton era a coisa mais importante que tinha acontecido à música brasileira. De minha parte, embora me fosse óbvio que “Canção do sal” e “Travessia” fossem composições belas, só comecei a perceber algo de especial em Milton quando o conheci pessoalmente. Desde que o vi algumas vezes no Redondo (bar que ficava em frente ao Teatro de Arena de São Paulo) tive a sensação de estar diante de alguém com conteúdos muito densos — e uma forma externa à altura: a beleza de seu rosto negro valeria por si só, não fosse o sentimento indescritível sugerido por seu olhar. Mas só vim a combinar essa experiência com a música que saía dali quando, de volta de Londres, em 72, vi o show do Teatro da Lagoa. Foi o show que encantou Wayne Shorter. Em Londres, Dubas chegou com um LP “Courage”. Ouvi, admirei mas não me deixei tomar. Vendo Milton com a banda no palco, de repente entendi tudo.

A música de Milton é a maior força de presença da música brasileira no mundo depois da bossa de Tom e João. Isso se deve a sua capacidade intuitiva para com as relações dos sons — e a forças atávicas, históricas e sociais da feitura de sua individualidade. (Quando vi, no resultado dos testes de DNA feitos com celebridades brasileiras, que Milton apresentava a mais alta percentagem de gens negros, pensei: tinha que ser no mínimo isso!) Primeiro a turma do jazz-fusion, depois a turma do rock e do pop: o mundo viu algo imenso erguer-se no Brasil.

E o próprio Brasil passou a gerar talentos grandes que tinham tido em Milton a inspiração: Ivan Lins, Djavan, Gonzaguinha, João Bosco…

Escrevo isto sob o impacto da leitura do livro de Amaral. E com o “Coração de estudante” a que o nó dos professores convida. Ainda o estou lendo, já mais perto do final. Mas não tenho outra coisa na cabeça.

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“A cada três assassinatos no país, em dois as vítimas são de cor negra”

Taxa

Matéria publicada no site O Globo [via João Ximenes Braga]:

BRASÍLIA – O homem brasileiro negro perde 1,73 ano de expectativa de vida ao nascer — devido à violência — enquanto a perda do branco é de 0,71 ano. Além disso, a cor negra faz aumentar em cerca de oito pontos percentuais a probabilidade da pessoa ser vítima de homicídio. Os dados inéditos foram divulgados nesta quinta-feira pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Boletim de Análise Político-Institucional. Os números vão constar ainda em um mapa do racismo no país que deverá ser divulgado pelo IPEA em até 30 dias. No boletim, sete artigos tratam de temas como a segurança pública, a pacificação das favelas e as manifestações de junho.

No texto “Segurança Pública e Racismo Institucional” os autores Almir de Oliveira Júnior e Verônica Couto de Araújo Lima, respectivamente pesquisador do Instituto e acadêmica da área de Direitos Humanos da UnB, falam da desigualdade de acesso à segurança entre brancos e negros. O artigo também discute o racismo que existe na atuação policial. De acordo com levantamento de Júnior, a cada três assassinatos no país dois são de negros. Ainda de acordo com ele, no conjunto da população residente nos 226 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, é calculado que a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos.

— Existe uma tendência de que os negros sofram maior repressão pelo sistema de justiça criminal, seja por uma vigilância mais incisiva por parte da polícia, ou por uma probabilidade maior de sofrerem punição — avaliou Júnior que constatou: — É comum que policiais trabalhem de forma discriminatória ao buscarem sua clientela, com base em estereótipos que têm a cor da pele dos suspeitos seu elemento principal.

De acordo com Daniel Cerqueira, diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea, mais de 60 mil pessoas são assassinadas a cada ano no Brasil. Ele lembra que a taxa de homicídios — com base em números do IBGE 2010 e informações do Ministério da Saúde — é de 36,5 para 100 mil habitantes no caso de negros e de 15,5 para brancos. O percentual de negros vítimas de agressão que não procurara a polícia é 61,8% enquanto os brancos é de 38,2%. Para Cerqueira, o negro é discriminado pela sua condição social e cor da pele.

— A criminalidade e o racismo são doenças sociais complexa e esse problema é do governo e de toda sociedade. Não há soluções fácies. Houve mudanças nos últimos 20 anos, mas ainda há muito trabalho a fazer — disse Cerqueira.

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“Cheira como inconformismo” – Tony Bellotto

Muito boa a estreia de Tony Bellotto no Segundo Caderno do jornal O Globo. A crônica foi publicada no dia 23 de junho de 2013:

Napalm

“Adoro o cheiro de napalm pela manhã”, diz o esquizofrênico coronel Kilgore, personagem interpretado por Robert Duvall em “Apocaypse now”, enquanto surfa nas marolas de um rio durante um bombardeio na Guerra do Vietnã. Ao final da frase – uma das mais famosas do cinema -, o patético Kilgore conclui, inspirado pelas emanações do líquido incandescente e devastador: “Cheira como& vitória”.

Avenida Paulista

Em São Paulo depois de um ensaio com os Titãs, me deparo a caminho do hotel, na Avenida Paulista, com tropas de choque da polícia militar e caio por acaso numa das manifestações que têm ocorrido com frequência em cidades brasileiras nos últimos dias. Testemunho uma batalha campal, com a polícia descendo descaradamente o sarrafo nos manifestantes. Flashes de meus tempos de estudante assaltam-me a memória e me reúno àqueles jovens que – há quanto tempo eu não via isso! – protestam contra alguma coisa.

Gás lacrimogênio

Ao sentir olhos, narinas e garganta arderem ao contato do gás lacrimogêneo, automaticamente me entrincheiro com os manifestantes contra a ação exageradamente violenta da polícia. Entre uma tomada de ar e uma esfregada nos olhos parafraseio o detestável coronel Kilgore – por motivos opostos aos seus, ressalte-se, já que sou um flanador ingenuamente anarquista e defensor radical dos direitos individuais e da democracia: “Adoro o cheiro de gás lacrimogêneo ao cair da tarde. Cheira como& inconformismo.”

Polícia para quem precisa

Sou de uma geração que cresceu durante a ditadura militar e atingiu a maioridade quando o país se redemocratizava. Participei de manifestações contra a ditadura e a favor das eleições diretas e da anistia. Integro uma banda que se notabilizou pelo discurso contestador e insubmisso. Não estivessem meus olhos lacrimejando por conta do nefando gás, eu poderia creditar a uma constrangedora onda de sentimentalismo as lágrimas que me escorrem pelas faces ao ouvir os manifestantes entoando a música “Polícia” – que compus há exatos 28 anos – como um hino de resistência à truculência policial na Avenida Paulista. “Polícia para quem precisa, polícia para quem precisa de polícia”& snif, snif.

Cavalo de Troia

Há tempos me intrigava a apatia dos jovens em relação à política. Uma estratégia que incluía a cooptação de estudantes pelo poder estabelecido, com o ardil eficiente de creditar qualquer insatisfação com um governo popular a uma manifestação “burguesa”, ou elitista – no melhor estilo com que se acusavam os contrarrevolucionários no stalinismo -, somada a um sentimento generalizado e ufanista, docemente iludido, de que o Brasil deu certo, aparentemente funcionou muito bem até aqui. Na eclosão do escândalo do mensalão nos idos de 2005 estranhei que tão poucos artistas se manifestassem contra a esbórnia institucional que aqueles eventos sugeriam. Os Titãs foram dos poucos – pouquíssimos – a compor uma canção que comentava a situação, e “Vossa Excelência” é um hit que não podemos – e não queremos – deixar de fora de nossos shows até hoje. Talvez o gás lacrimogêneo tenha limpado meus olhos como um colírio ardente e me permitido ver que a suposta apatia dessa juventude, como num ditado zen, era apenas um cavalo de Troia recheado de revolta.

Navegar é preciso

Os jovens manifestantes criticam os aumentos das tarifas dos ônibus e do custo de vida, a má qualidade de transportes, educação e saúde, e questionam a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil. Ou seja, fazem o que jovens sempre fizeram, ou deveriam fazer: criticam, contestam e questionam tudo que acham errado. Os jovens falam por todos nós, ninguém aguenta mais tanta bandalheira e descaso. O movimento se expande e começa a receber adesões de toda a sociedade. O ponto mais interessante é que não aceitam a tutela de partidos nem de ideologias, pelo contrário, os abominam, o que demonstra que são mais inteligentes e articulados do que muitos gostariam. Ah, e se comunicam pelas redes sociais da internet, como fazem seus companheiros da praça Tahrir, da praça Taksim e de muitas outras praças libertárias espalhadas pelo mundo. E tem gente que ainda vê a internet como um poço de alienação. Navegar é preciso, dizia o poeta.

Caos

Pegos de surpresa, imprensa e políticos – e boa parte da população atônita – tiveram a princípio a percepção de que as manifestações expressavam uma ação desarticulada de vândalos incendiários e desocupados ressentidos. Mas estavam errados e já reformulam às pressas seus discursos e teorias. Concordo que qualquer patrimônio – histórico, público ou privado – não deve ser depredado, assim como o direito de protesto tem de ser respeitado até o momento em que ameace a segurança pública. Mas é muito difícil encontrar esse equilíbrio e algum caos terá de ser assimilado. É preciso ter um caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela bailarina, dizia o filósofo.

Pai e filho

Me ocorre uma canção composta por Cat Stevens antes de se tornar um fanático religioso e sectário, “Father and son”. Nela Cat expressa duas visões de mundo na forma de um diálogo entre um pai e um filho. Diz o pai em tom grave: “Não é tempo de mudar, apenas sente-se e vá devagar, você continua jovem, esse é o seu problema, há muita coisa que você tem que enfrentar.” E o filho rebate em tom agudo, quase gritando: “Como eu posso tentar explicar, quando faço ele ignora, é sempre a mesma coisa, a mesma velha história. Quando pude falar, fui obrigado a ouvir. Agora há um caminho e eu sei que tenho de ir embora, eu sei que tenho de ir.”

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“Odeio o Brasil” – Francisco Bosco

Excelente a crônica de Francisco Bosco publicada no jornal O Globo, a 13 de junho de 2013:

Nunca pensei que fosse escrever isso. Fui formado principalmente por uma tradição de intérpretes do Brasil que enxergava na singularidade de nossa formação um vasto tesouro e um enorme potencial. A cultura popular em Mário de Andrade, a criatividade antropofágica em Oswald, a glória e a tragédia da miscigenação em Freyre, até chegar em intérpretes contemporâneos, como Risério, Caetano, Wisnik, Antonio Cicero, entre outros que, sem baratear nossos impasses e mazelas, permaneceram afirmativos da nossa singularidade e capazes até mesmo, como no caso de Caetano, de vislumbrar uma civilização brasileira com lições a oferecer ao mundo. Infelizmente, sinto-me cada vez mais afastado de um pensamento amoroso e afirmativo de nossa história, de nosso presente e, consequentemente, de nosso futuro.

Um dos traços mais positivos de nossa formação é o fato de que aqui o concreto prevaleceu sobre o abstrato. É claro que o reverso da moeda, como soube ver de modo seminal Sérgio Buarque de Holanda, é a incapacidade de regularmos as relações sociais pelos princípios abstratos e impessoais da lei. Mas o privilégio do concreto sempre foi um antídoto poderoso, um desmentido da realidade contra as ideologias totalitárias, da eugenia racista aos monoteísmos perseguidores. Continuo considerando, por causa disso, o Brasil um país especialmente apto a erradicar o legado da escravidão, mas para isso precisamos de uma massa de ações afirmativas, o que por sua vez esbarra no reacionarismo de classe e no negacionismo interessado (talvez seja a mesma coisa). Continuamos sendo, por um lado, uma cultura livre dos terrorismos étnicos e religiosos que assolam boa parte do mundo, mas, por outro lado, o crescimento do poder dos monoteísmos ameaça essa que é uma de nossas poucas virtudes civilizatórias. Os evangélicos paranoicos, os cristãos obscurantistas e a direita monossexual à Bolsonaro vão ganhando terreno cada vez mais perigosamente. A PEC 99/11, que possibilita a entidades religiosas questionarem decisões judiciais, elevando os valores da fé a argumentos jurídicos, pode, se passar, ser um marco terrível da reação.

E tudo isso acontece, pasmem, num governo supostamente de esquerda, que muitas vezes facilita essas manobras e se esquiva o quanto pode de se pronunciar com clareza sobre temas civis fundamentais. À presidente Dilma parecem interessar apenas as questões relativas à economia; os posicionamentos do governo quanto a temas como casamento entre homossexuais e descriminalização das drogas são omissos ou conservadores.

Mas o mais grave ainda está por vir. Num momento em que a Humanidade precisa modificar sua intervenção no ecossistema, sob pena de não haver mais espécie humana, o Brasil aprova um Código Florestal catastrófico, os ruralistas mandam e desmandam no legislativo, a esquerda desenvolvimentista do PT insiste em construir Belo Monte — e os índios vão sendo assasinados, torturados ou relegados à mendicância (ou emparedados até o suicídio). Em uma manifestação contra o fim da Aldeia Maracanã, o poeta Ramon Mello carregava um cartaz onde se lia a precisa pergunta: “O que se teme no índio?” Não é difícil responder. O índio é para a nossa sociedade o objeto que impossibilita o recalque de uma verdade dura demais: a verdade de que o “progresso” humano está nos conduzindo dialeticamente à morte, à morte de tudo e todos. Os desenvolvimentistas querem acabar com o índio pela mesma razão que nós enterramos um cadáver: porque ele nos lembra da nossa própria morte. É isso o que se teme no índio. Não encarar agora a verdade simbólica do índio implicará em ter que encarar a verdade real que o seu extermínio anuncia.

E enquanto essas grandes questões vão regredindo em nome do progresso, a vida ao rés-do-chão não apresenta sinal de melhoras. Sim, o país cresceu; milhões de pessoas saíram da linha da miséria (embora uma matéria recente da “Folha” tenha mostrado que os números são controversos). E isso não é pouco. É de condições básicas que estamos tratando, de justiça social mínima. Viva o bolsa família. Viva o emprego. Viva a PEC das domésticas. Mas é incrível como permanece a incapacidade da sociedade brasileira de se pensar como um organismo interdependente, onde as ações de cada sujeito devem seguir critérios de justiça para o bom funcionamento do todo. Aqui é cada um por si e todos contra todos. Isso degrada a confiança no respeito às leis, sem a qual os cidadãos não conseguem deixar de reproduzir o comportamento de violação dos pincípios públicos, e produz um desgaste insuportável na vida cotidiana.

Feito o desabafo, resta seguir lutando.

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“Machado” – José Miguel Wisnik

Coluna de José Miguel Wisnik publicada em 1 de junho de 2013, no Segundo Caderno do jornal O Globo [via Conteúdo Livre]:

Em 2007 participei de uma Semana da Língua Portuguesa em Moscou. O evento era uma iniciativa das embaixadas do Brasil e de Portugal e desenrolava-se na Biblioteca de Literaturas Estrangeiras, em cujo pátio aconteceria o momento áureo e mais solene do evento: a inauguração do busto de Machado de Assis. Bustos, estátuas e efígies de escritores, meditativos, eloquentes ou simplesmente de perfil para a posteridade, espalham-se por toda parte em Moscou. Lá, os encontros costumam ser marcados aos pés de Pushkin. Maiacovski ocupa uma praça em cujo subterrâneo está a estação de metrô com seu nome, no teto da qual se inscrevem poemas seus. Dostoievski e Tchecov são colossais. A entrada em cena do busto de Machado era um passo modesto, mas curioso, e bem à moda russa, do lento reconhecimento que vem se dando do nosso escritor maior no plano da literatura mundial.

Mais curioso ainda, e no entanto nada modesto, se revelou quando nos deparamos com o lugar que o nosso marco literário ocupava no átrio povoado pelos vultos de Goethe, Proust, Joyce, Pirandello. É que o representante da embaixada, um animado nissei brasileiro, em contato com os funcionários da biblioteca, tinha perguntado a eles sobre a localização do busto a ser instalado. Como a Rússia se parece com o Brasil na admissão de uma razoável margem de indeterminação, a resposta foi a de que ele podia escolher onde lhe parecesse melhor. O resultado irônico, ao descerrar-se o véu inaugural, é que Machado reluzia nada mais nada menos do que no centro geométrico do pátio, no epicentro das forças literárias do ocidente, tendo à sua volta o que parecia ser por um momento um irlandês bêbado, um alemão altivo e deslocado, um francês blasé, um italiano à procura de lugar, sem falar numa legião de outras expressões nacionais, todos convertidos por um efeito ótico instantâneo em orla periférica da inesperada centralidade machadiana.

Por obra de um acaso objetivo que não deixava de ser cômico e iluminador, o “mestre na periferia do capitalismo”, em Moscou, ocupava o centro. É significativo lembrar que o próprio Roberto Schwarz chamou a atenção, em “Ideias fora de lugar”, para as enormes afinidades entre as literaturas do Brasil e da Rússia, esses países continentais historicamente ligados ao escravismo e à servidão, na periferia do centro europeu. Por uma espécie de inadvertida revanche contra o pouco reconhecimento internacional de sua grandeza, o fora de lugar encontrava neste lugar de fora um equívoco mas não descabido lugar máximo. Não sei se a biblioteca russa corrigiu ou não, depois, o gesto soberano do nosso representante diplomático, que, sem saber, fez justiça com as próprias mãos: justiça, refiro-me, ao que sustentara Susan Sontag em 1990, confessando-se “espantada de que um escritor de tamanha grandeza ainda não ocupe o lugar que merece no palco da literatura mundial”. Na mesma passagem, ela constatava o quanto o centro pode ser periférico, e a periferia, central.

Lembro tudo isso por causa da tese de Hélio Guimarães, de cuja banca fiz parte, e que rastreia mais de um século da recepção crítica de Machado de Assis, os caminhos enviesados da sua conversão em monumento e as surpresas desconcertantes que ele não cessa de fazer pelas bordas e no miolo. Pelo quanto uma obra literária pode demandar, suportar e desafiar leituras ao longo dos tempos. Pelo quanto somos esquisitos aos olhos do mundo, e aos nossos, se nos admitíssemos nos ver. Lembro os textos de José Antonio Pasta que flagram a luta de morte como constante estrutural insidiosa no romance brasileiro, onde os antagonistas se confundem e se anulam sem a possibilidade de um salto dialético.

Penso no fato de que, desde a minha última coluna, na qual crianças xingavam André Mehmari, um morador de condomínio de luxo matou o casal vizinho por causa de som e fúria, significando nada, o prefeito do Rio esmurrou um artista que o xingava, mas que não sustentou o que dizia e o golpe que sofreu, e mais um dentista teve o corpo queimado por bandidos, atestando que o crime também segue, a seu modo, tendências e moda.

Hoje, no entanto, tudo isso é atravessado por um raio luminoso, o depoimento da historiadora Dulce Pandolfi à Comissão da Verdade, sobre as torturas que sofreu durante a ditadura militar. Da violência nós sabemos, de maneira genérica. Da sordidez e da minúcia sádica, da covardia e dos meandros mais mesquinhos e sinistros do mal, confundidos com a vida oficial brasileira, ela nos diz de maneira elevada, cristalina e irrespondível. Esse depoimento precisa ser conhecido na íntegra, não direi como uma lição moral e cívica, que não deixa de ser, mas como um testemunho da nossa humanidade.

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“Projeto de Niemeyer à espera de cuidado”

Matéria de Gabriel Paiva publicada no jornal O Globo de 19 de maio de 2013:

A importância arquitetônica da Casa das Canoas, em São Conrado, é sentida em cada metro quadrado, entre as linhas finas do concreto do piso, antes de pedra São Tomé, que levam à piscina da área externa. O projeto é de Oscar Niemeyer, que desenhou o imóvel para morar em 1953, antes de partir para o Cerrado, alguns anos depois, a convite do então presidente Juscelino Kubitschek, e dar formas ao que viria a se chamar Brasília. A casa foi aberta ao público há 15 anos, tornando-se protegida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2007, em um tombamento coletivo de 35 obras do arquiteto em comemoração aos seus cem anos. Apesar da experiência marcante de entrar na casa onde morou Oscar Niemeyer, as marcas do tempo têm voz própria: o imóvel clama por uma boa reforma. Esse foi um dos motivos do fechamento para visitas, em junho do ano passado. Em pequenos detalhes, como esquadrias descascando, partes da estrutura de sustentação das belas estátuas do escultor Alfredo Ceschiatti enferrujadas, pisos escorregadios por causa das chuvas e do musgo, rachaduras e infiltração nas paredes dos cômodos do andar de baixo – local que Niemeyer não gostava que fosse visitado, por não mostrar a beleza arquitetônica da parte externa – entende-se o porquê da decisão. – A casa é no meio da floresta, precisa de manutenção diária. A última reforma foi feita há 13 anos, tem que fazer tudo de novo. Ela não está em perfeitas condições, por isso resolvemos fechar. Abrir para o público exige uma infraestrutura, para que a experiência seja produtiva. Se não, é só um tiro no pé – explica Carlos Ricardo Niemeyer, bisneto de Oscar e diretor da área de licenciamento da Fundação Niemeyer. A maior reclamação dos visitantes é que não há informações na internet sobre o fechamento da casa. No site da fundação, nem mesmo o endereço está disponível. Antônia de Lima, funcionária que cuida da casa desde 1973, conta que a procura de visitantes é diária e que muitos pulam a cerca para conhecer o local. Foi o caso do dinamarquês Marius Jeppesen, estudante de arquitetura que tentou agendar a visita antes mesmo de chegar ao Rio, em março deste ano: – Tentei planejar, mas foi difícil achar informações na internet. Eu estava muito empolgado para visitar a casa onde morou Niemeyer, mas fiquei desapontado com o estado precário em que a encontrei. Tentei ir uma vez, e estava fechada. Voltei no dia seguinte, de novo fechada, então resolvi pular o muro, já que tinha vindo de tão longe. Ao entrar, encontrei um grupo de espanhóis que tinha feito a mesma coisa. E qual seria o cenário ideal para os herdeiros de Niemeyer? Reabrir a Casa das Canoas em perfeito estado, mas a grande demanda, essa avalanche de turistas e brasileiros amantes de arquitetura, fez com que eles repensassem o plano inicial: – A ideia é fazer pequenos ajustes e reabrir a casa em junho, às quintas e sextas-feiras, e talvez em mais um dia do fim de semana. A visitação vai ser gratuita, porque a casa ainda não está nas condições ideais, por isso não acho válido cobrar entrada – explica o diretor da Fundação Niemeyer. O custo mensal de manutenção do espaço, mesmo fechado, é de R$ 10 mil – incluído o pagamento de pessoal (faxineira, caseiro e jardineiro) e pequenas obras feitas anualmente, como pintura do portão, da sinuosa laje branca e das esquadrias. O valor é desembolsado pela família. O desejo do clã Niemeyer é fazer um acordo dando carta branca para a fundação tomar conta oficialmente das visitas. Mas, com a morte do arquiteto e de sua única filha, Anna Maria Niemeyer, a Casa das Canoas entrou em processo de inventário.

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