Excelente o ensaio de Ivan Marques, professor de literatura brasileira da USP, publicado na Folha de S. Paulo:
“Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. (…) por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos”. Esses versos de abertura do poema “Mundo grande”, incluído no livro “Sentimento do Mundo”, sintetizam a nova orientação que, no começo dos anos 1940, já vivendo no Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade procurou dar à sua poesia, antes acusada de evasiva e individualista. Em contraste com a inércia de permanecer na concha ou na torre de marfim, o poeta “gauche” fazia naquele momento um esforço de dessacralização da figura do artista, revelando o desejo de estar em comunhão com os outros, de circular anônimo pelas ruas, de viver uma espécie de “solidão povoada”.
Há duas imagens fortes associadas a Drummond: o funcionário público e o representante do homem rural de Minas. Como se tivesse sido talhado à semelhança das montanhas, o poeta ganhou o rótulo de pedregoso, seco, introspectivo, desconfiado, de difícil acesso. Já a imagem do funcionário público parece corresponder com exatidão ao “bocejo de felicidade” que teria sido a sua vida. O epitáfio sugerido pelo poeta (“Este foi burocrata”) deixa clara a importância que ele dava a essa atividade, considerando-a o traço fundamental de sua biografia.
Para ele, entretanto, a atividade burocrática foi também espaço de devaneio e de criação literária – “a rotina e a quimera”, conforme definiu numa das crônicas do livro “Passeios na Ilha”. E não foi algo que o separou dos homens, ao contrário do que sugere o termo “repartição” (tão isolante quanto “ilha” ou “montanha”), mas uma porta aberta que o conduziu ao contato diário com as pessoas. O serviço público, reduplicado pela experiência jornalística, que iniciou bem cedo, no começo dos anos 1920, no “Diário de Minas”, ajudou a fazer dele um poeta sociável, poroso ao cotidiano, interessado nos problemas coletivos como poucos de nossos escritores.
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Drummond tinha o gosto da conversa – daí a colaboração regular para os jornais, a farta produção de crônicas e o gosto de dar entrevistas. A ideia de que fosse sempre arredio, resistente aos entrevistadores, viessem do jornal ou da universidade, não se sustenta quando lemos as conversas – francas, soltas, penetrantes, irônicas e, sobretudo, amorosas – reunidas no livro “Carlos Drummond de Andrade”, que está saindo agora, pela Editora Azougue, com organização de Larissa Pinho Alves Ribeiro.
Ao todo, são dezessete entrevistas, cobrindo um período de 60 anos, de 1927 a 1987. Trata-se de uma sucessão de retratos do poeta, que acompanham com precisão os passos e os impasses de sua obra. Como fonte de informações biográficas, o volume é bastante útil, acrescentando dados ao material já fornecido por outras contribuições do gênero (“Dossiê Drummond”, de Geneton Moraes Neto, e “Os Sapatos de Orfeu”, a única biografia existente do poeta, de autoria de José Maria Cançado, ambos relançados recentemente pela Editora Globo). Mas o bom das entrevistas, quando insufladas por intensa vida literária e atenção ao “vasto mundo”, é que elas revelam os lances decisivos de todo um processo artístico-cultural, bem como os atropelos do processo social e histórico.
“Não dou entrevista” é o título da primeira delas, dada a Peregrino Jr. em 1927, na qual o poeta, ainda inédito e com modéstia mineira, prefere dizer alguns versos do que emitir opiniões. Depois confessará que tem dificuldade para falar de si mesmo, na primeira pessoa, ecoando a tendência a criticar a expressão egótica do indivíduo, que é um dos pontos nevrálgicos de sua lírica. Com o tempo, porém, as entrevistas foram amiudando, e duas décadas depois ele chega a gravar uma série de conversas com a amiga Lya Cavalcanti, publicadas mais tarde, nos anos 1980, com o título “Tempo, Vida, Poesia: Confissões no Rádio”. Na coletânea que chega agora às livrarias, há um time diversificado de entrevistadores, que inclui Geir Campos, Pedro Bloch, Fernando Sabino, Gilberto Mansur, Zuenir Ventura, Humberto Werneck e até mesmo a filha do poeta, Maria Julieta Drummond.
Um terço das entrevistas provém da década de 1980. Nessa fase final, elas teriam aumentado (inclusive na televisão) basicamente por dois motivos: o fato de Drummond ter abandonado sua coluna no jornal (espaço que já continha, segundo ele, tudo que podia dizer aos jornalistas) e sua transferência para uma nova editora, a Record, que lhe impôs, numa época de desenvolvimento do mercado editorial brasileiro, um esquema “profissional” de divulgação. Por coincidência, o mesmo processo se repete agora, quando a obra drummondiana migra para a Companhia das Letras – e o poeta, que em 2012 será homenageado pelos 110 anos de seu nascimento, volta com força às páginas dos jornais. Estivesse vivo, teria que dar um número infinitamente maior de entrevistas. E por certo não reclamaria, ele que, em seus últimos anos, não recusava sequer os pedidos de jovens estudantes – recebia as perguntas sempre por escrito e enviava as respostas invariavelmente “dentro de 24 ou no máximo 48 horas”.
Se algumas perguntas eram ingênuas, repetindo lugares comuns e tendendo a colocar o poeta “nas nuvens”, as respostas, ao contrário, eram sempre equilibradas, agudas e, muitas vezes, surpreendentes. Nas entrevistas, deparamos com a mesma sinceridade que se manifesta na correspondência com os amigos. Essas duas modalidades de expressão, aliadas ao texto jornalístico, compõem o espaço de uma reflexão ousada e inquieta, cujas antenas apontavam para todas as direções. “Nunca me furtei a dar minha opinião”, afirma Drummond.
Às crônicas, cartas e entrevistas, deveriam ser somadas as anotações de diário, como as do livro “O Observador no Escritório”, que trata da vida política e literária do Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Essas páginas de opinião têm ainda algum parentesco com as dedicatórias, homenagens e votos de boas festas que o poeta dirigia aos amigos – reunidas no volume “Versos de Circunstância”, publicado este ano pelo Instituto Moreira Salles, com organização de Eucanaã Ferraz. Poéticas ou prosaicas, orais ou escritas, todas são falas ligadas ao presente e ao cotidiano. E nada disso destoa, afinal, da grande poesia que Drummond produziu não sobre as coisas eternas, que ele também abordou, mas poetizando a “circunstância”. O grosso de sua produção poética – e não só a fase participante dos anos 1940 – gira em torno da “vida menor”, da “enorme realidade”, o autor assumindo-se como “poeta do finito e da matéria”.
Os amigos são um capítulo à parte. Para eles, segundo o poeta, teria sido escrita toda a sua obra. Os maiores, afirmava sem hesitar, foram Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Mas dizia que nada se comparava aos jovens que conheceu em 1920, em Belo Horizonte, que definiram o rumo de sua vida: Pedro Nava, Abgar Renault, Emílio Moura, João Alphonsus, Gustavo Capanema, Cyro dos Anjos, entre outros. Esteve sempre rodeado de companheiros, ao contrário do que dizem os versos do “Poema de sete faces”: “O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.” A estrofe ocupa o centro do poema, e a circularidade de sua construção parece reforçar o isolamento do poeta.
Ao comentar uma fotografia do jovem Drummond, Mário de Andrade brincou que ele tinha “cara de Ouro Preto”, que era um perfeito “homem da decadência”. Por conta dessa sisudez, mais tarde também diriam que ele parecia ter fugido de algum quadro de Modigliani. Entretanto, assim como estava cheio de amigos, o homem atrás dos óculos não era assim tão sério, também gostava de blagues e molecagens. É o que ele faz na sequência final do curta-metragem “O Fazendeiro do Ar” (1972), de Fernando Sabino e David Neves, desaparecendo atrás das pilastras do Ministério da Educação para surgir logo depois, todo sorrisos, como num passe de mágica. Contrastando fortemente com as imagens iniciais – do poeta andando tenso pelas ruas, de braço colado ao corpo, como de hábito -, essa brincadeira entre os pilotis sintetiza na verdade um dos traços essenciais de sua personalidade.
No caso de Drummond, o humor não representou apenas uma arma da inteligência, no duelo contra o sentimentalismo. As “cambalhotas” que lemos em seus versos correspondiam a uma tendência natural e profunda desse homem que na intimidade, segundo a filha Maria Julieta, se parecia bastante com Chaplin, não por acaso homenageado num longo poema de “A Rosa do Povo”. Outro artista que ele invejava era Vinicius de Moraes, por sua doce independência de espírito, sempre alheio às convenções sociais. Por trás do funcionário público, havia em Drummond um espírito anarquista, manifesto desde a adolescência. “Eu achava lindo esse negócio de jogar bomba”, confessou o poeta. São famosas as estripulias que praticou ao lado de Pedro Nava, arrancando placas das ruas, tocando fogo em bondes e até mesmo em numa casa de família (“ato gratuito” que depois ele chamou de “estupidez”).
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Esse Drummond moleque, que nos surpreende atrás dos óculos – atrás da fachada de homem “triste, orgulhoso, de ferro” – é o mesmo que temos o prazer de reencontrar nas crônicas e nas entrevistas. Se escreveu tantas vezes uma poesia tensa, esquiva e até agressiva, eis que de repente o comediante ressurge em outras pilastras (“as colunas da desordem”, como diria Murilo Mendes), com a elasticidade de um macaco. Além de ser o lugar da opinião e da participação na vida pública, o jornal foi também o espaço amistoso desses deboches e cambalhotas. “Como cronista”, afirma o poeta, “eu me sinto um palhaço, um “jongleur”, dando saltos e cabriolas, fazendo molecagens.” Da mesma maneira, a leitura das entrevistas é diversão garantida (veja abaixo algumas das blagues do poeta).
Na introdução de seu primeiro livro de prosa, “Confissões de Minas”, Drummond afirma que a poesia diz respeito a momentos específicos, enquanto “a prosa é a linguagem de todos os instantes”. Por acolher de modo tão alargado a “consciência do tempo”, espelhando como o próprio veículo jornalístico a cacofonia das cidades, a prosa drummondiana não deixa de ser também um dos testemunhos mais concretos (e discretos) do espírito modernista, de que ele foi, desde a primeira hora, como se sabe, um dos principais representantes no Brasil. A “expressão livre e arejada” (nas palavras de Drummond num artigo sobre Abgar Renault), que é própria do movimento modernista, define com justeza o texto das crônicas. Também serve, claro, para a fala ainda mais livre e despachada das entrevistas, que o tempo todo mesclam indignação e deboche, discurso empenhado e blagues, erudição e gírias. Nos dois casos, reencontramos o jovem que, antes mesmo de aderir ao modernismo, já se pautava pelo temperamento “anarquista”, lúdico e antirretórico. Aqui se vislumbra, portanto, uma das faces mais características de Drummond: “a desenvoltura do poeta no mundo terreno”, no dizer de Sérgio Milliet.
O autor da peça mais escandalosa do período modernista, “No meio do caminho”, esboçou a princípio uma série de ressalvas ao movimento, especialmente ao nacionalismo estético proposto por Mário de Andrade. Mais tarde, porém, enquanto o autor de “Macunaíma” promovia críticas amargas ao vanguardismo de 1922, Drummond voltaria ao tema sempre com revisões ponderadas e positivas. Esses balanços são uma constante nas entrevistas, reiterando-se a cada década a valorização do modernismo por sua extensa repercussão na cultura brasileira, por sua “história viva, fecundante”, por ter sinalizado “coisas obscenas e dramáticas”, que depois seriam aprofundadas pela ficção e pela pesquisa sociológica. Tendo feito tudo isso, seria injusto vê-lo apenas como um brinquedo. O modernismo, conclui Drummond, “divertiu, irritou, destruiu e construiu, e ainda perturba a insônia de alguns pobres diabos”.
Um balanço contundente da geração modernista já tinha sido dado pelo poeta em 1944, ao publicar “Confissões de Minas”, relançado agora pela Cosac Naify, com posfácio de Milton Ohata e reprodução de cinco artigos que integram a fortuna crítica do livro. Os textos pertencem a vários gêneros, destacando-se os ensaios críticos sobre os companheiros do modernismo e poetas do período romântico, ao lado de evocações de velhas cidades mineiras. Se estas são interiorizadas, relevando a busca de uma “paisagem de dentro”, os perfis literários também revelam o perfil do próprio Drummond, de modo que tudo são confissões, ainda que indiretas. Paradoxalmente, o livro foi chamado pelo autor de “depoimento negativo”, um relato de como se libertou de seus “fantasmas particulares”, a começar pela sombra de Minas.
De acordo com Milton Ohata, “Confissões de Minas e “Passeios na Ilha”, de 1952 (também relançado pela Cosac Naify, com posfácio de Sérgio Alcides), são o correlato em prosa das inquietações que aparecem na poesia drummondiana das décadas de 1940 e 1950. “Passeios na Ilha” também investe na prosa de ensaio, voltada de preferência para matérias literárias, embora o autor, na introdutória, prefira chamar-se de “cronista”. Os livros apontam para direções contrárias: enquanto o primeiro exorta os escritores a participar das coisas do mundo (acompanhando a proposta engajada de “Sentimento do Mundo” e “A Rosa do Povo”), o segundo propõe o refúgio na ilha e admite como natural a evasão antes rejeitada, nos mesmos termos da coletânea de poemas “Claro enigma”.
Entretanto, como escreve Sérgio Alcides, o mesmo Drummond que, por meio da epígrafe de Paul Valéry, se dizia entediado pelos acontecimentos, também nessa época vinha consolidando sua presença no jornalismo carioca. E não seria esse, talvez, um dos sentidos da recusa das ofertas transcendentais da “máquina do mundo”? Não haveria aí uma disposição de abraçar materialmente o próprio mundo? Nas entrevistas dadas a partir do final dos anos 1940, Drummond também defende a liberdade do artista e seu direito à reclusão. Mas o fato de se expor cada vez mais frequentemente nos jornais reafirma o desejo de continuar sendo um intelectual ativo e participante.
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É preciso, na verdade, desfazer essas antinomias, como insiste o poeta diante das perguntas dos seus entrevistadores. Se trabalhou no Ministério da Educação, isso não significa que tenha sido um “homem do Estado Novo”. Do mesmo modo, o fato de ter abandonado a esquerda não impediu que mantivesse a sua crença no socialismo. O individualismo não exclui a possibilidade de se fazer uma poesia social, assim como o engajamento não contradiz o cuidado com a linguagem, e assim por diante.
Drummond admite que, em 1964, por perceber um clima de “desordem” e não confiar na habilidade política de João Goulart, resolveu dar seu apoio à “revolução de 1964”. Mas logo depois se arrependeu, praguejando contra o autoritarismo e a intromissão dos militares na vida pública brasileira. Vinte anos depois, lançaria um olhar crítico sobre a transição da ditadura para a democracia, não aderindo à campanha das eleições diretas para presidente, por achar que o país precisava, em primeiro lugar, de uma estrutura constitucional. A todo momento reaparece o tema da menoridade política, obsessão de letrados e intelectuais ao longo de toda a história do Brasil.
O juízo sobre o futuro presidente Lula, que Drummond apresenta aos leitores 1984, época em que o PT ainda engatinhava, é simpático e ao mesmo tempo lúcido, apurado: “Numericamente, ele [o partido] é pouco expressivo, e acredito também que o Lula não seja um elemento capacitado para exercer uma ação política mais profunda, com fundamentos teóricos, para mudar a estrutura de poder no Brasil, mas é, por outro lado, sem injustiça nenhuma, um elemento poderoso e influente (…) e tem um ideal, tem uma palavra a dizer em nome de inúmeras pessoas.”
Drummond não podia, claro, prever o futuro – e lembra inclusive, a seus entrevistadores, que não era um astrólogo. Ocorre que, por estar tão preso à “vida presente” – cuja “explicação”, vale lembrar, dependia para ele do (re)conhecimento do passado -, o poeta acabou desenvolvendo olhares mais amplos sobre o Brasil e o mundo contemporâneos. Crítico desde jovem da modernização reificadora, também não tolerou, no final da vida, ver os prejuízos causados pela globalização ao “universalismo humanista” e às aldeias como Itabira, à qual o poeta se via atado, como homem eternamente “rural”. A massificação cultural, segundo ele, tinha ainda o efeito negativo de deteriorar o sentimento estético. E esse seria um problema no mundo inteiro, transformado em nosso tempo numa “mixórdia triste”. E arremata: “Poesia ruim porque os tempos estão ruins.”
Mas o tempo ruim também serve para movimentar a consciência crítica, que no caso de Drummond tem raízes amorosas, não se confundindo com o sarcasmo ou o desprezo. O amor, conforme já havia dito, é “palavra essencial”. Numa de suas últimas entrevistas, ele repete o elogio: “O valor transcendental da vida humana é o amor.” A pedido dos jornalistas, também falava muito do amor carnal e do livro de versos obscenos que ele relutava em publicar (“O Amor Natural” saiu apenas em 1992, cinco anos a pós a sua morte). Ele que tinha sido atacado, nos anos 1930, por escrever o verso “Oh! Sejamos pornográficos”, agora tinha medo de que o vissem como “velho bandalho”. Não haveria razão para susto. A despeito de sua admirável gravidade, essa lírica docemente pornográfica pode ser vista como mais uma “cambalhota” do nosso jovem anarquista, mais um sorriso amoroso que um de nossos mais autênticos modernistas dirigia às limitações da “vida besta” e terrena. Amor e humor, desde o começo.