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Poema de Golgona Anghel

Antigamente os bisontes eram gente
e namoravam as raparigas
mais bonitas da aldeia.
Os judeus tinham cauda e
os homens menstruavam duas vezes por mês.

Ninguém se queixava de nada.
Tudo tinha o seu lugar.
Líamos Tolstoi num Skoda,
Hölderlin num Trabant descapotável,
Joyce num Aston Martin,
Camões nm UMM.

As grandes emoções
vinham das palavras longas:
astralopitecos, jerusalamaleques,
extremaunçãoparaumapernadepau, etc.
Isto explica tanta coisa,
mas não vem nos livros de história.
A história faz apenas ecoar o passado.
Como um búzio.
O passado é o lugar onde os nossos ex
se juntam aos mamutes, à Céline Dion
e ao Windowns XP.

 

Do livro Nadar na piscina dos pequenos (2017)

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Adília Lopes: “Poetisa e infantil no bom sentido”

Matéria de Hugo Pinto Santos publicada no jornal Público, de Lisboa:

Adília Lopes acaba de publicar Manhã, um livro de memórias que é um livro de poesia. O reviver de um passado que os versos trazem à vida, mas que nunca realmente desapareceu da memória e do olhar da autora.

A conversa decorre na Estefânia. Talvez porque este seja o território de Adília Lopes.

O seu bairro é “um sítio pacífico, com árvores”. Além disso, pensa Adília – demora escassos segundos –, “tem pessoas velhas, que são delicadas. Tem… paz.” “Por enquanto, tem paz.”, acrescenta a poetisa. Adília Lopes prefere esse termo à palavra, hoje mais comum, “poeta”. “As pessoas associam a palavra ‘poetisa’ a uma coisa má, pirosa. Também não consigo dizer: ‘Sou uma poeta.’ Até porque lembra a outra palavra feia.” A maneira como Adília Lopes fala das lojas da Estefânia, ou daquelas minudências que seriam tão difíceis de fixar por escrito, é a de alguém que presta uma atenção invulgar aos pormenores e àquilo que a distracção e a rotina nos fazem descurar.

Esta parte da cidade de Lisboa em que vive parece ser a única em que seria capaz de passar os seus dias. Nunca viveu muito tempo longe deste lugar. “sou a verdade/ que prefere não sair do bairro”, escreveu José Tolentino Mendonça num poema chamado Adília Lopes. “O máximo que estive fora de casa foi um mês e uma semana, em França, aos dezassete anos.” Essa experiência surge retratada em Manhã (Assírio & Alvim), que Adília Lopes acaba de publicar – “Em 1977, fiz um curso de férias em Dijon. Passei o mês de Agosto no Pavilhão Lamartine no campus universitário.” Algo que se repetirá em diversos pontos desta sua mais recente colectânea de poemas. Porque é de “um livro de memórias” que se trata. Manhã, confirma, “fala da minha infância. É manhã nesse sentido. Lembra-me também Manhã Imensa, de Ruy Cinatti, e O Ar da Manhã, de António Gancho”.

Manhã é, então, um indicador no calendário do dia que é a vida. Mas é também uma escolha marcadamente pessoal, carregada de afecto e de sentido. Adília Lopes levanta-se cedo, pelas seis e meia da manhã. Gosta de ir ao café nesses momentos em que ainda lhe é possível observar “a lua e as estrelas”, como diz. Uma reminiscência, talvez, da sua formação científica (estudou Física, uma área que continua a interessá-la). Portanto, aquele período do dia é algo mais do que uma simples fracção no relógio do quotidiano. É a marca do sujeito por trás da escrita, aquele que está por entre as suas palavras e as habita.

História doméstica
“Até aos dez anos não fui boa aluna. Não gostava da escola, estava sempre doente, não ia muito à escola…” As coisas mudaram por volta dessa idade. Adília regista com agrado “as experiências pedagógicas do [ministro da Educação] Veiga Simão.” “Um ensino em que se dava mais atenção à criatividade.” No caso de Adília, as inovações parecem ter resultado, e o seu olhar conhece uma luz suplementar quando se refere a esse período da sua vida. Adília Lopes já contou várias vezes que, em casa, quando era jovem, os pais desligavam a televisão quando alguém lia poesia. Não era um desligar da poesia, de toda a poesia, mas de “uma ideia errada de poesia”, como diz a autora. Na sua família, a prima Maria Lucinda, conforme Adília conta numa crónica – e num poema de Manhã – passou a ser “a Confrangida” graças a um empolamento semelhante. Para clarificar a noção de uma poesia “enfatuada, estereotipada” Adília Lopes cita D. Hélder Câmara, e o seu Um Olhar sobre a Cidade, quando ele fala de uma poesia em que se põe “a mão no coração quando se diz coração”. Era a essa poesia que viravam costas. E é óbvio que a poesia que Adília Lopes escreve está nos antípodas dessas noções fossilizadas do discurso poético.

Manhã é um livro de história doméstica. É História. É um livro rigoroso, não tem inexactidões.” Salvo em dois casos, pormenoriza Adília. Num dos poemas que compõem o livro, lê-se que a autora pica os dedos com “uma espécie de pistola”, por causa da diabetes. Mas isso não é exacto: Adília fá-lo numa farmácia. Outro caso tem que ver com uma exposição do artista Xana, que a autora situa na década de 80, mas que não sabe precisar se teria visitado nos anos 90. Adília Lopes não tem computador, ou talvez lhe tivesse ocorrido pesquisar na Internet, a confirmar. Usa ainda a Olivetti azul que refere nas suas crónicas. Uma peça “fabricada na Jugoslávia, quando ainda havia Jugoslávia”. As partes da máquina de escrever – um objecto em vias de extinção, senão já claramente extinto –, obtém-nas junto de pessoas amigas, “às vezes em lojas na província”. É nesse vestígio teimoso de outras épocas que passa a limpo os seus poemas. Porque primeiro escreve-os à mão, em cadernos. Escreve todos os dias. Mantém, “desde os doze anos e meio”, um diário em que se aplica quotidianamente. Não se destina à publicação (mas talvez não seja bem assim, como veremos), porque está escrito numa “linguagem privada”. Não que haja nele alguma coisa que não se pudesse ler, como explica, mas porque não se perceberia: “não é uma coisa que se possa comunicar, que se possa divulgar”. Mas chegará a condescender, ainda que com nítidas reservas, que “alguma coisa se poderá publicar”.

Mais adiante, Adília há-de chamar a esses registos do seu dia-a-dia “livros de artista”, por serem objectos belos e decorados. E porque estão ilustrados com desenhos que a autora faz, com canetas Bic. Trabalhos de que fala de forma passageira, quase negligente. Sem que, no entanto, isso esconda o interesse que eles têm para ela. No tocante à possível relação entre desenho e escrita, Adília recorda que o pai, professor de Desenho, tinha um diploma obtido num curso frequentado na adolescência, no qual se podia ler: “Se sabes escrever, sabes desenhar.” Esta parece ser uma formulação que activa reacções nas suas memórias afectivas, mas que também a ajuda a explicar um pouco a génese mais recuada do impulso para a escrita – “Como todas as crianças, comecei por desenhar, mas a certa altura isso já era escrever.” Em Apanhar Ar (Assírio & Alvim, 2010), as ilustrações que acompanham os poemas são da autoria de Adília enquanto (muito) jovem artista. O prolongamento entre as duas linguagens parece uma ilustração da história do seu processo criativo. Adília falará também dos desenhos de Roland Barthes reproduzidos na capa de Roland Barthes por Roland Barthes, para desenhar um paralelo com os seus, por ela descritos como “um pouco automáticos”. Barthes é outra das referências importantes para Adília Lopes, que o citará e o há-de referir mais de uma vez no decurso desta conversa.

“Eu estou sempre a escrever mentalmente. Não é uma coisa que se pare. E ao longo do dia vou escrevendo no caderno.” Adília distingue, ainda que tenha dificuldade em delinear uma fronteira clara, entre essa “coisa mental” e a feição prática da escrita. “Escrevo todos os dias, mas às vezes não há aquele momento de fulgor. Não há… inspiração. As pessoas hoje acham piroso chamar-lhe inspiração, mas há inspiração. É a musa. A Sophia dizia: a musa. Às vezes não acontece o poema.” Adília está a citar Sophia, mas também Pessoa. Procura resposta para o que lhe viaja na mente na Arte Poética de Dual, em que Sophia cita Fernando Pessoa quando este diz: “Aconteceu-me um poema”. Sophia é uma referência tão constante quanto, porventura, surpreendente. “A poesia não explica: implica.” é uma das primeiras frases que nos diz. E pertence a Sophia.

Rapidamente se fica a perceber que a tranquilidade e o sossego são alguma coisa a que a autora dá uma grande importância. Mas que isso não faça pensar em excesso de pacatez. Não faltam contradições nas aparentes certezas que estes poemas põem em evidência. “Os poemas são impessoais. É claro que são autobiográficos…”, concede Adília Lopes. Mas o que parece incongruente é, na verdade, explicável por uma dinâmica específica à sua concepção de poesia. “A partir dos 23 anos, consegui escrever poemas que se aguentam. Que podem ver a luz do dia, podem ser publicados. E isso não é um desabafo, não é uma inconfidência.” O que é outro aspecto em que a poesia se separa do diário que mantém há mais de 40 anos. E a marca da impessoalidade que a autora defende para a sua poesia.

A vida e o verso

Quando lhe perguntamos pelas diferenças, se as há, entre a poesia que hoje escreve e a que publicava há 30 anos, o paralelismo que Adília Lopes encontra é interessante. E revelador. Porque indicia uma identificação inseparável entre a matéria da vida e a substância do poema. A relação parece abstrusa, indirectamente achada, mas depressa se percebe que Adília experimenta, de facto, a poesia como se, realmente, fosse impossível separá-la da vida: Os Cadernos de Poesia diziam: ‘A poesia é só uma.’” Pronuncia claramente: “O importante é escrever a poesia, vivê-la.” Alexandre O’Neill, outro dos seus autores, fornece-lhe oportunidade de tentar explicar-se: “Conforme a vida que se tem o verso vem”. Mas de novo Adília quer seguir outro caminho que não o óbvio. Desconcerta, mesmo que não expluda; diz o que não se espera, ainda que aquilo que diga não chegue a extravasar qualquer limite: “Os intelectuais endeusam o livro, as obras. E isso não é o mais importante. O mais importante é o amor.”

“Escrever um poema/ escavar uma toca”, escreve em Manhã. Não é uma poética, é “um lema de vida”. Uma defesa não contra o esquecimento – que dificilmente lhe acontecerá, com a sua memória digna de fábula –, mas contra a perda de inocência. Quando lhe lembramos uma passagem de Manhã como “Tenho 54 anos e continuo a pensar como quando tinha 4.”, Adília apressa-se a clarificar. O que defende é a possibilidade de “ser infantil no bom sentido.” A referência à Condessa de Ségur é inevitável. “Na vida há muita perversidade, e os livros dela ajudam a lutar contra essa perversidade, a defendermo-nos contra a perversidade…” Num exercício de memória e de abstracção em que se percebe não haver muito esforço, propõe: “Na infância, há muita perversidade, mas não é só isso. Há um mundo na infância que me fascinava… O enxoval da boneca da Margarida de Rosburgo…” Adília transcreveu o conteúdo desse enxoval no final de O decote da dama de espadas. Embora tenha utilizado a versão original, a sua intenção era recorrer a uma tradução antiga, como as que leu na infância, “porque as tradutoras dos livros da Condessa de Ségur tinham um português muito engraçado…” Adília faz reviver esses episódios da sua infância com uma nitidez impressionante. Como aquele em que viajava com a mãe de eléctrico, da Baixa para a Estefânia.

“Foi a seguir ao Martim Moniz, na Rua da Palma. Havia, naqueles eléctricos, uma fresta entre a janela e o parapeito que dava para a rua. E foi aí que caiu o biberão da boneca.” Adília, é bom que se note, a bem da exactidão que ela própria preza, não diz, nem escreve, “biberão”, mas “biberon”. Adília já não vai tanto à Baixa. “Já não há os eléctricos…” Antigamente agradava-lhe andar de metro, e continua a gostar de autocarros, mas como “há tempo” não os utiliza, não se sente à vontade. Não são lugares que tenham a paz que aprecia no seu bairro. Adília não conduz, nem tem carta – como diz algures: “nem automóvel, nem telemóvel”. Também anda a pé. Curiosamente, um dos seus livros anteriores chamava-se Andar a pé (Averno, 2013), embora, nessa recolha, a expressão se referisse menos à locomoção do que a outras dimensões advindas das possibilidade da deslocação no espaço. Quando Adília Lopes se volta para a rua, parece que os eléctricos voltam a subir e descer aquela rua. E que há um ruído de atritos e poeiras que sobe de novo em espirais sonoras até aos andares mais altos dos prédios em redor.

Do mesmo autor, resenha sobre o novo livro de Adília Lopes, também publicada no Público:

A arte de Adília Lopes aparenta-se com a técnica do objet trouvé. Também ela parece encontrar, ou forçar esse acaso, nos restos da sua própria biografia, da topografia urbana (mormente lisboeta), ou em paisagens bibliográficas, os materiais para os seus poemas. É como uma autobiografia na qual tudo tivesse explodido em redor. Ou uma casa de janelas abertas a correntes de ar ferozes. Mas este é um domicílio que não autoriza esse excesso de domesticidade que Cesariny dizia ser letal. Porque é por entre escombros e detritos de casas e de tempos vividos que se move o sujeito poético. Pelo caminho apanha do chão o que foi arremessado pela fúria do circunstancialismo biográfico ou efabulatório. De O Pequeno Lord, já na infância, “Só havia a capa.” (p.47)

Conforto e confronto, sossego e incómodo. São assim os poemas em Adília Lopes. E para Adília Lopes. Como a autora dizia numa crónica, o “texto, esse abismo e esse sofá”. Numa outra crónica, Adília escreveu: “transcrevo a bela e o senão”. Não é apenas a debatidíssima questão dos jogos de sentido o que aqui está em causa, mas a falsa ingenuidade de um fazer poético. Melhor seria falar em aparente ingenuidade, pois há nesta poesia uma aproximação a certa posição ética que defende uma posição de verdade, que não se compatibiliza com falsidade. Nesse sentido, a implicação da poesia na vivência do sujeito poético que (quase) transparece nos poemas está patente num trecho em prosa que acompanha o seu livro A Mulher-a-Dias (&etc, 2002): “os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a minha vida”. Eis uma torção dos parâmetros canónicos que funciona a favor desta poesia que dificilmente podia ser menos política, mas que tanto depende da tensão envolvente – e não precisamos de nos cingir à pólis.

Manhã é um livro de memórias. Não é exactamente habitual que confinem de forma tão explícita o discurso poético e o registo da autobiografia – mas não sem os boicotes que vão acidentando o caminho. Tal como sucedia em Café e Caracol (Contraprova, 2011), Andar a Pé (Averno, 2013) e Variety is the Spice of Life (Telhados de Vidro, 2014), os poemas surgem datados. No caso deste último núcleo, um dos poemas tem, inclusivamente, a indicação da hora. Estas informações, se não são despiciendas em anteriores colectâneas – onde marcam uma certa ideia de veracidade e de registo fiel que acompanha os poemas –, adquirem em Manhã uma importância adicional. É como se os poemas que compõem a mais recente recolha de Adília Lopes revertessem para o registo diarístico, que constitui um paralelo secreto mas sem dúvida fundacional para este universo de escrita. Ao datar de forma tão explícita os poemas, a autora está a outorgar-lhes a possibilidade de agirem como documentos de uma vida. Com tudo o que essa possibilidade tem de inviável e, não há como negá-lo, eventualmente, contraproducente. Porque, como é natural, não são indiferentes a estas considerações a noção de impessoalidade da escrita e a dupla falácia da intenção e do biografismo. E no entanto, um livro como este volta a lidar com a questão da vida transposta para as palavras de uma forma que ainda alicia. Há um poema, chamado Maravilha, que, de forma muito aparentemente ingénua, põe a questão com especial acuidade. De tal forma que acaba por funcionar como uma metáfora para essa condição – “A Condessa de Ségur fala de um livro que não é um livro. Carrega-se num botão a meio e o falso livro abre-se e é uma caixa de tintas.” (p.117) Um poema (em prosa, como o são muitos dos que formam este livro) como este activa, desde logo, um dispositivo que a poesia de Adília tem explorado com a frequência e a consecução que se conhecem. Ao fixar naquela escritora as atenções desta composição, a poeta recua a uma referência matricial da sua poesia – “Devo tudo à Condessa de Ségur.” (p.41), dirá noutro poema –, mas igualmente, como é bem de ver, concentra no território da infância os esforços do poema. Ao fazê-lo, está a reforçar o carácter memorialístico deste registo (no prolongamento de larguíssimas extensões da sua obra) e a eleger essa idade como a o verdadeiro tempo fulcral da sua poética.

Sem obedecer a uma ordenação cronológica estrita – quer na aparição dos episódios seleccionados, quer nas datas que situam temporalmente os poemas –, Manhã revisita passos considerados importantes da vida da autora. Mas sobretudo relê a própria noção de biografia. Porque, como é óbvio, não pode proceder a uma actualização integral desse pressuposto de género literário – sob o risco de comprometer a valia de um livro de poemas. Adília Lopes procede, antes, por uma via pela qual obliqua o seu caminho. Se a analogia pictórica fosse especialmente proveitosa, diríamos que a técnica seria anterior à perspectiva (ou suplantadora dela). Não interessam a estes quadros a profundidade de campo, ou o escalonamento dos planos, mas a disposição quase instintiva de diversos domínios num só fio de representação. Assim, o modo como se apresentam as partes da composição não defende uma harmonização totalizadora. A experiência quase cubista de “Greta Garbo” é um bom exemplo disso mesmo. À parte da ironia que percorre o poema – e que se consolida mais plenamente no final da leitura completa dele –, os elementos não respondem a uma ordem que, por assim dizer, se imponha de fora, mas parecem obedecer a uma lógica intrínseca que despreza qualquer organização estreita – “Sou parecida com Greta Garbo. Durante anos fui muda. Depois Garbo talks. Depois em Ninotchka Garbo laughs. Fico na Ninotchka, Adília laughs. Não quero acabar os meus dias num cantão da Suíça atrás de uns óculos escuros. Era só o que me faltava.” (p.105) Neste poema (aqui citado na íntegra), o cruzamento entre a biografia sumaríssima da diva do cinema com a do sujeito poético dá-se de forma tão selectiva e esquinada, tão intrincada e veloz, que o efeito de derrisão se confunde com a implosão da própria noção de biografia que anima todo o livro. Que parte da vida do sujeito é aqui convocada? Que cronologia lhe poderia dar lugar? Apenas o género é aqui dinamitado. Apenas o efeito biográfico sofre um dos seus abalos mais profundos. E mais interessantes.

Como tantas vezes sucedeu ao longo da sua obra – o primeiro livro da autora, Um Jogo bastante Perigoso (Ed. da Autora, 1985) publicou-se há 30 anos –, a literalidade é um dos principais signos da irreverência da poesia de Adília Lopes. Porque aquilo que estamos permanentemente a interpretar de forma figurada, surge, em todo o seu esplendor, ou em toda a sua trivialidade, como facto textual no poema. Como sucede no poema “A Minha Bisavó”, no qual a passagem do tempo opera a sua transformação erosiva. Neste caso, essa acção recai sobre uma representação religiosa (como no poema “Vazio” ela se dava numa fotografia de bilhete de identidade), ferida na sua integridade pela cruel secularidade do tempo – “Agora a Nossa Senhora parece que está a aquecer as mãos numa fogueira. Não quero ser irreverente.” (p.69) A questão é que o é. E é-o porque, tal como as crianças, que Adília Lopes com tanta frequência – por vezes de forma exasperante – pretende eleger como modelos, diz aquilo que pensa. Ou diz, sem aparente maldade, o literal. Como dirá em Caladryl – uma meditação de tons ambiguamente sombrios, em que avultam colorações garridas que recobrem medicações, a sobrecarga da memória e a artificialidade do que escapa ao mundo biológico –, “Para mim, os nomes são coisas.” (p.88) Numa formulação que lembra a lição de Sophia Adília Lopes fixa nas coisas a sua pena e a sua salvação – “Dou uma importância excessiva às coisas” (p.89).

Adília parece tomar para si a “maravilha” (p.53) dos olhos das moscas. São elas que, em Moscas, encerram o poema, como uma espécie de resumo do voo rasante pelas incógnitas do passado que só algo demasiado exterior e extemporâneo poderia observar. Esses olhos de mosca são os do poeta que se permitiu reviver a infância em poemas de um pormenor quase inverosímil. Mas, assim como “Não há sinónimos.” (p.55), a identificação nunca é perfeita. O que quebra, sem regresso, a possibilidade de executar plenamente a biografia. De resto, não parece ser isso que Manhã se propõe fazer. Pense-se por exemplo, num poema como Geometria Descritiva, para se perceber que este livro não pretende formar uma imagem fiel, mas multiplicar as possibilidades de reflexo. Nele, Adília Lopes utiliza certas incidências na sua biografia (como a oscilação de peso) para se identificar – de um modo com tanto de eficaz como de perturbante – com uma personagem que encarna a sua capacidade de se metamorfosear, de se esticar e encolher, à medida das necessidades do seu recuo e avanço no tempo – “Sou certamente a Alice no País das Maravilhas.” (p.58)

 

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“Eduardo Lourenço: amor e literatura”

Este texto de Eduardo Lourenço foi publicado no site do JL, no dia 23 de outubro de 2013:

Para os admiradores incondicionais de Pessoa, a leitura da sua correspondência com a predestinada jovem com o nome fatídico de Ofélia não é um texto como qualquer outro de Pessoa. Podemos imaginar que na sua perspetiva este episódio único do poeta da “Tabacaria” como pastor amoroso era, ou foi, tão ficcional como todos os outros que subscreveu com o seu nome ou com o dos famosos heterónimos.

A esta última comédia que lhe conferiu uma aura universal designou-a ele como “drama em gente”. Mais sofisticado labirinto literário não se conhece. Há mais do que a sombra dele, ao menos do seu lado, nas cartas que trocou com Ofélia, vítima propiciatória da alma múltipla apostada em imitar Deus e ser como ele “tudo de todas as maneiras”.

Só que Ofélia não era um seu heterónimo mas uma jovem burguesa de Lisboa dos anos 20, que talvez nunca tenha imaginado que chamou a atenção de Pessoa por ter aquele nome mítico como destino.

E destino lhe foi. Para Pessoa foi antidestino de que só ele conheceu os emaranhados e tenebrosos fios. Tanto mais emaranhados que, logo que se apercebeu que aquele enredo era real e nenhuma ficção o podia desatar sem remorso e culpa, convoca a sua criatura diabólica Álvaro de Campos para se desfazer de um laço que ele próprio criara para ter a ilusão, solitário absoluto, de que podia ter companhia.

 Assim introduz no seu jogo de sedução impura a parte tenebrosa de si, o mau da fita, Álvaro de Campos. Jogo de sedução que lembra um pouco o de Kierkegaard, se Ofélia pudesse acompanhá-lo nesse jogo, como Regina Olsen o fizera, por ter luzes e a determinação que a cândida e amorosa heroína shakespeariana à força, muito lusitanamente, não possuía. Em vez disso possuía um coração simples, intuitivo e vulnerável, naturalmente amante, sabendo amar como “o amor ama”, como também sabia, mas só como virtualidade, o imortal autor da “Ode à Noite”.

 Comédia de enganos, anverso de todo o fascínio amoroso? Da sua parte sim e, todavia, não era uma comédia cínica de libertino na alma, apenas a de alguém tão íntimo da noite universal e tão desesperado como raros da linhagem dos danados da terra e abandonados de Deus. No seu caso, consciente disso como todos os filhos de Nietzsche e de Rimbaud, apostados em reinventar “outro sentido” para glorificar uma existência sem ele.

 Alguém imagina possível um diálogo, um encontro viável, entre um émulo de Lautréamont e uma jovem burguesinha, no limiar de uma época emancipadora, mas para quem só o casamento canónico era sinónimo de sucesso e felicidade? Da sua “cultura”, no sentido habitual, não há nas suas cartas de amorosa transida e cedo dececionada senão os traços de classe dessa época e pouco mais. Já nesse plano é difícil imaginar uma dissimetria mais funda. Um pouco mais velho, o primeiro reflexo de Pessoa é “infantilizar” o objeto do seu “juvenil” e tardio entusiasmo. Mas talvez o que mais surpreenda para quem conhece tão bem as reticências eróticas do autor do Fausto (“O amor causa-me horror, é abandono/ Intimidade…”) ou as suas pulsões pouco canónicas (Antinoos) seja, sob a pluma real do autor de Mensagem, a assunção de um Desejo, se não com maiúscula platónica, pelo menos na sua versão comum, provocado pela Vénus urânia que Ofélia parece ter sido para tão visível esfomeado de amor e companhia.

 Este ostensivo erotismo, embora brincado e mesmo adolescentemente brincalhão (eterno regresso da alma e do corpo à infância de onde emergiu?), surpreendeu e continua a surpreender, menos pela sua óbvia assunção que pelo contraste com a mitologia do Desamor que foi para o poeta a única musa e música a que votou a sua demoníaca (e diviníssima) adoração. O que no espaço da pura virtualidade, que é por essência o da Poesia (de todas e não só a dele, Eróstrato de si mesmo), se celebra e se esconde ao mesmo tempo (“Meu ser vive na Noite e no Desejo. / Minha alma é uma lembrança que há em mim”) é, quanto muito, misticismo amoroso em torno do “esplendor nenhum da vida”.

Nessas cartas inimagináveis para quem já era o poeta da “Ode Marítima” ou do oitavo poema do “Guardador de Rebanhos”, onde a sua “verdade” erótica se exprime em litanias infantis, cheias de “inhos e beijinhos”. Mimetismo sacrificial da ternura autêntica vivida à sua altura pela tão pouco celeste mas comovente e desencantada Ofélia, mais destinada a heroína antiga como Efigénia que a vítima sarcástica de um super Hamlet redivivo? Este abismo (escrito) entre a expressão amorosa de Ofélia, vampirizante como todas, e o vampirismo de segundo grau que é o de Pessoa, desta vez nu e sem máscara, na medida em que o podemos conceber como oposto do que desde a infância o elegeu diferente, Narciso cego perdido na sua Noite como essência do mundo e nós nele, surpreendeu e escandalizou aqueles que mais precocemente se viram confrontados com aquilo que o seu biógrafomo, João Gaspar Simões, designou de “enigma de Eros”. E que aqui, na correspondência, em vez de solução, conhece uma espécie de metamorfose sem redenção. Para ambos os protagonistas, mas de diversa e oposta versão.

No plano do banal fait-divers tratou-se de um encontro/desencontro entre dois seres predestinados para nunca se encontrarem e, uma vez encontrados, cada um deles vivendo, um na plena e redentora ilusão de se saber amado – miticamente “para sempre” -, e outro num mundo alheio, insuspeitado da ingénua Ofélia, tão perspicaz na ordem do coração como a Maria do Fausto mas, como ela, votada à desilusão por quem há muito – quase desde a infância – se via e via a vida -a sua e a da Humanidade inteira – como pura e incontornável Ilusão.

Se Ofélia tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável “namorado” (epíteto que apenas concebido lhe seria insuportável), onde nada se glosa senão a evidência de que a Vida é pura Ficção e a chamada Ficção a única e impensável “verdade” dela, não teria embarcado nessa travessia do coração para um porto que nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa viagem sem viajante dentro. A pobre (a rica) Ofélia tinha razão quando o seu estranho colega de escritório vinha ao seu encontro com o seu duplo infernal Álvaro de Campos. O coração não a enganava, que o coração só engana quem o não escuta. Essa comédia -versão lisboeta do famoso Dr. Jekyll e Mr. Hyde – nada tinha de cómico. Se o tivesse conhecido a sério (lendo-o menos distraída) teria sabido a tempo que o espetral Álvaro de Campos era a encarnação mesma da “paixão do fracasso”, a que Robert Bréchon se refere com pertinência. E nunca ninguém epitetou melhor o génio de espécie nova que escreveu “Tabacaria”. Que provavelmente Ofélia nunca leu.

 Em parte alguma Fernando Pessoa está mais ausente de si mesmo, dos outros e do mundo que nestas cartas que têm como palco a espetral cidade de Lisboa, tão viva por fora e tão irreal por dentro com o Poeta jogando o mais sério dos jogos como se fosse o extraterrestre de si mesmo. Todos os leitores conhecem, por ele no-lo ter imposto, o seu mundo de irrealidade sonhada onde desde cedo se refugiou para suportar a insuportável e incógnita realidade do que chamamos Vida.

 Mas nunca, como nestas “fingidas” cartas de amor sem fingimento que as resgate por dentro (quer dizer da poesia mesma que tudo redime, mesmo o que não pode ser redimido), no-lo tornam tão estranho de uma estranheza muito diferente da que o tornou único no espaço do nosso imaginário ocidental e não só.

 Bem sabemos que num celebérrimo poema brincado, Pessoa, como quem antecipadamente se absolve, glosou o tema do fatal ridículo que seriam as cartas de amor em geral, escritas apenas para o segredo e leitura de quem as escreveu.

 E é verdade que à parte as famosas cartas de Mariana Alcoforado, celebradas por Stendhal e que não serão nossas, a nossa epistolografia amorosa conhecida (mal conhecida) não goza de uma reputação muito gloriosa, salvo a que releva de textos em si ficcionais como os do sublime Bernardim ou dos postos por Camilo na boca póstuma da heroína de Amor de Perdição. E, contudo, autênticas e soberbas cartas de amor nossas nada têm de ridículo ou não vivem apenas da paixão sem frases que as elevam acima de si mesmas.

Exemplo insuperável entre nós, as de Garrett a Rosa Montufar, andaluza ardente e refinada.

A deceção (relativa) que todos nós, admiradores quase acríticos de quem escreveu o Livro do Desassossego -monumento sem par à tristeza infinita de não saber ou poder amar -, só nos vem, lendo estas cartas -referimo-nos às de Pessoa, que as de Ofélia de tão cândidas e sentidas não desiludem senão pelo excesso de idolatria sem eco à altura dela -por não reconhecermos nelas aquele fulgor inteligente que distinguiu Pessoa e que aqui brilha menos como eco ou reflexo de um amor ou uma ternura que o submergiu ao menos em certos momentos que por uma espécie de “frieza”, ou reticência afetiva, que desde o início se manifesta, como se o demónio da dúvida ou a sua hiperconsciência de si e de tudo cavassem um abismo impossível de atravessar entre ele e o outro.

Robert Bréchon, ecoando David Mourão-Ferreira, sublinhou como convinha e na companhia de outros exegetas de Pessoa, de Ángel Crespo a Leyla Perrone-Moisés, “a impressão estranha” que esta correspondência, destinada a interessar meio mundo por ser de quem é, quase sempre provocou. À parte o contributo nada desprezível que ela representa como uma espécie de diário obcecado e obcecante da vida real do famoso empregado de comércio de Lisboa e da vida lisboeta em pano de fundo, o sentimento de estranheza (de ordem estética, sobretudo?) mantém-se.

São raras as peripécias desse famoso encontro-desencontro, no plano sempre terrífico do único sentimento onde num segundo se joga o destino de uma vida, que nos transportam como o menor verso do Poeta.

Mais significativos, mas não inéditos, são os reflexos de uma certa crueldade sem sujeito que em várias passagens transfiguram essa tão banal (por fora) aventura humana em campo de batalha onde só reina um silêncio pior que a morte. Contudo nós não temos um testemunho mais direto da vivência quotidiana do autor de “Ode Marítima” que este combate íntimo com outro ser que o amou sem Literatura. E sem querer reenvia para a única paixão que assolou Pessoa como vocação e destino, a ponto de lhe sacrificar o que cada um de nós chama “felicidade humana”, o monstro sublime da nossa imaginação que nós chamamos Literatura.

Ler mais: http://visao.sapo.pt/eduardo-lourenco-amor-e-literatura=f754289#ixzz2iYV7wh6D

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“[Outra mulher: o susto]”, de Carlos de Oliveira

 

VIII

 

Outra mulher: o susto
a entrar no pesadelo;oprime-a o ar; e cada passo
é apenas o peso: seios
donde os mamilos pendem,
gotas duras
de leite e medo; quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,
num descampado vagaroso;
e amor também:
espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.

 

Do livro Entre duas memórias, que se encontra na poesia reunida de
Carlos de Oliveira,
Trabalho poético, Lisboa, Assírio & Alvim

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“Cinema”, de Carlos de Oliveira

Raros são os textos que definem tão bem o que é a poesia. Do livro Sobre o lado esquerdo, reunido em Trabalho poético (Lisboa, Assírio & Alvim), no Rio de Janeiro esse volume pode ser comprado na Poesia Incompleta:

II

A lentidão da imagem
faz lembrar
o automóvel na garagem,
o suicídio com o gás do escapa,
quer dizer,
o coração vertiginoso
e a lentidão do mundo
a escurecer
nas bobines veladas
dos suaves motores crepusculares
ou, por outras palavras,
flashes, combustões,
entregues ao acaso das artérias,
melhor, das pulsações.

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“Salmo”, de Carlos de Oliveira

 

A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.

 

De Cantata, na edição Trabalho poética,
Lisboa, Assírio & Alvim

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“Elegia em chamas”, de Carlos de Oliveira

 

Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:

Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.

 

Do livro Terra de harmonia, na edição Trabalho poético,
Lisboa, Assírio & Alvim

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“Sobre o lado esquerdo”, de Carlos de Oliveira

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu coração, esmagar o coração.”

Do livro Sobre o lado esquerdo, na edição Trabalho poético,
Lisboa, Assírio & Alvim

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Soneto XIX, de Rainer Maria Rilke

 

Ainda que se mude rápido o mundo
como figuras de nuvens,
todo o perfeito tomba
de volta ao primordial.

Por sobre a mudança e a marcha,
mais longe e mais livremente,
dura ainda o teu pré-canto,
deus com a lira.

Os sofrimentos não são reconhecidos,
o amor não é aprendido,
e o que na morte nos afasta

não é desvelado.
Unicamente a canção por sobre o campo
santifica e celebra.

 

De Sonetos de Orfeu, Tradução de José Miranda Justo,
Lisboa, Assírio & Alvim

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“Porquê ler os clássicos”, de Zbigniew Herbert

 

1.

no quarto livro da guerra do Peloponeso
Tucídedes conta-nos entre outras coisas
a história da sua mal sucedida expedição

entre os longos discursos dos chefes
batalhas cercos pestes
uma densa rede de intrigas de diligências diplomáticas
o episódio é como uma agulha
na floresta

a colônia grega Anfípolis
caiu nas mãos de Brasidos
porque Tucídedes chegou atrasado com o socorro

devido a isso foi condenado pela sua cidade
ao exílio eterno

os exilados de todos os tempos
conhecem que preço é esse

 

2.

os generais das guerras mais recentes
se algo de semelhante lhes acontece
choram de joelhos perante a posteridade
e louvam o seu heroísmo e inocência

acusam os subordinados
os colegas invejosos
os ventos desfavoráveis

Tucídedes diz apenas
que tinha sete barcos
que era Inverno
e que navegou com celeridade

 

3.

se a arte tivesse uma jarra quebrada
por assunto
uma pequena alma quebrada
com uma grande pena de si própria

o que permaneceria de nós
seria o choro dos amantes
num pequeno e sujo hotel
quando o papel de parede amanhece

 

Do livro Escolhido pelas estrelas, antologia poética, de Zbigniew Herbert
Tradução de Jorge Sousa Braga, Lisboa, Assírio & Alvim

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