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“Labadee”, de Luanna Belmont

 

debaixo da copa rala da
amendoeira
os galhos finos do Haiti se enroscam
contra o sol
a praia está sonâmbula
é agora um lugar de guardar navios gigantes
que trazem gente de toda parte
mas não para olhar o Haiti
assim debaixo contra as folhas
tenras da amendoeira
não para olhar o sol
do Haiti lá em cima
além das flores miúdas
da amendoeira
centenas desembarcam para
molhar os pés noutra língua
encharcar-se de outros fugir-se
dizer que pousaram noutro país
tão estranho quanto o seu
– que graça há se não se volta
para contar o que é o Haiti sem
a igual amendoeira da infância? –
enquanto no Haiti a amendoeira
descansa invisível
sobre a areia que não é mais
a areia de 1492
onde Colombo pisou
conforme anuncia o encarte
distribuído aos visitantes que
pagaram algumas centenas de dólares
para comer hambúrgueres e
cranberry juice
com hora marcada na ilha
de Labadee
nela uma amendoeira jovem
encara de longe o navio
de dezessete andares
de uma companhia dinamarquesa
porque não o Haiti não é aqui
sob o vento da velha ilha de Labadee
very very grateful for everybody
coming here
o Haiti quem sabe
nem fale inglês
nem francês
nem espanhol
nem português
mas possa ensinar aos cruisers
enjoados com o balanço do navio
o que seja
to shake shake shake
during a fucking real
earthquake

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“Cardiograma” – Marcos Siscar

 

as ruas não eram mais argumentos recusavam-se
desiguais ou em lascas emudecidas e sem segredo
no melhor dos casos me dizia já sem convicção
essas ruas áridas oblíquas avaras seriam
um ritmo de falhas sobre as quais
se debruçam velhas quaresmeiras
em flor

 

De Manual de flutuação para amadores, 7Letras

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“É”, de Eucanaã Ferraz

O Davi não nos vê. Poderia dizer que é divino
o modo como o Davi não nos vê. O olhar vara
um destino certo um infinito reto de onde pudesse vir
um barco um homem um cavalo e nele pousaria um jarro.
Olhamos o Davi sem descanso ponderamos ângulos
giramos ele não vê decerto se espantaria da ronda vulgar
em tantas línguas desencontradas quem sabe se enternecesse.
Mas o Davi tem a dádiva de não nos ver. Nu inteiro
perfeito não sabe o que é estar nu ou não estar nu.
Está em paz. Está onde está. Traz a medida
da certeza. E porque não existe nele
o que chamamos ele o Davi é absolutamente visível.

 

de Trenitalia, 7Letras, Megamíni, 2016

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“THE ACT OF KILLING – Joshua Oppenheimer (2012)”, de Luca Argel

THE ACT OF KILLING – Joshua Oppenheimer (2012)

 

I.

 

a primeira vítima da cadeira elétrica

foi um cão vira-lata chamado “Dash”.

sua morte ocorreu em nova iorque

no dia 30 de junho de 1888.[1]

primeiro, descarregaram 300 volts pelo corpo de Dash,

o que o fez uivar.

depois tentaram 400 volts, que também

não conseguiram matá-lo.

por fim subiu-se a corrente para 700 volts,

o que o deixou com a língua pendurada,

mas ainda respirando.

foi na quarta tentativa que o mataram,

comprovando, assim, a eficácia da invenção.[2]

 

 

II.

 

a primeira vítima humana da cadeira elétrica

foi um homem chamado William Francis Kemmler.

sua morte ocorreu em nova iorque

no dia 6 de agosto de 1890.

ao contrário de Dash,

Kemmler era um criminoso confesso.

supunha-se que a invenção daria uma morte tão rápida

que lhe passaria quase inadvertida.

os verdugos que prepararam a execução de Kemmler

eram engenheiros e eletricistas –

não eram figuras mascaradas, nem policiais.

uma vez sentado e amarrado,

deu-se a ordem para liberar 1.000 volts combinados.

segundo as testemunhas,

o corpo de Kemmler enrijeceu-se rapidamente,

saíram-lhe os olhos e a pele ficou branca.

depois de dezessete segundos,

um médico certificou-se da morte do réu.

nesse momento diz-se que o Dr. Alfred Southwick,

um dentista que estava presente,

levantou-se e declarou: “aqui está

a culminação de dez anos de estudos e de trabalho.

a partir deste dia vivemos numa civilização mais elevada.”[3]

 

[1] 17 dias após o nascimento de Fernando Pessoa.

[2] Durante os dois anos seguintes a comissão estatal norte-americana trataria de levantar trinta e quatro possibilidades diferentes para substituir a forca, das quais conhecemos apenas as quatro finalistas:o garrote vil; a guilhotina; injeções hipodérmicas (possibilidade logo rejeitada, pois “a morfina podia levar a eliminar o medo da morte nos réus”); e, é claro, a cadeira elétrica, que já havia sido aprimorada com a ajuda de outros cães além de Dash (e cavalos também).

[3] No entanto, Kemmler ainda não tinha morrido, e várias das testemunhas o fizeram notar. Então elevou-se imediatamente a corrente para 2.000 volts, e desde logo a saliva começou a correr pela sua boca, romperam-se-lhe as veias e as mãos encheram-se de sangue. Finalmente, o corpo ardeu em chamas por inteiro.

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“Cronologia”, de Leonardo Gandolfi

Tecnicamente não sou lá boa pessoa.
Amei e fui amado sem ter visto nisso
amor ou o que quer que seja. Em segredo
traí amigos mulheres e a memória alheia.
Cultivei a mentira o medo a covardia,
tudo em seu registro menos assertivo,
e só mais tarde fui aprender que ao melhor mal
coube a mim apenas a melhor resposta.
Pois se houve bem no mal do qual fiz parte
foi o de ver que as pedras que tenho no bolso
também estão no bolso daqueles que não
abracei nem dei a mão. Nossa canção
embora solitária e cheia de paz
é uma só canção e, cante o que cantar,
ouviremos apenas os ruídos deste
que tem sido apesar de tudo o nosso tempo.

 

Do livro A morte de Tony Bennett, Lume Editor, 2010

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[Você acaba de sair], de Mariano Marovatto

 

Você acaba de sair
e preciso ocupar
sua metade na cama
A cama é minha, estou morto
há indícios de que você seja muito russa
e da Rússia eu só conheço a Sacalina
e da Rússia eu só conheço a Lapônia
estou morto, seus olhos são gigantes
você está em preto e branco
você está falando coisas que não entendo
você está no século passado
seus olhos são gigantes, vivos ou mortos
eu ocupo a cama inteira
você acaba de sair
você é imensa,você é um trem
eu atravesso a Rússia, eu salto, eu erro
um terceiro andar imenso
da Sacalina para a Lapônia
Há uma gare, você de vestido
há uma gare, você dá boas-vindas
há uma gare, talvez eu não salte
há uma gare, sua boca está viva

 

Do livro Casa, Rio de Janeiro, 7Letras, 2015

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Minilivros 7Letras – Lançamento

Sem Título

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07/04/2015 · 15:16

“Cometimento da chuva”, de Laura Liuzzi

Uma beleza de poema de Laura Liuzzi, autora de Calcanhar (7Letras):

 

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Poesia de Ruy Belo publicada no Brasil

Matéria publicada no jornal português Público:

Ruy Belo e Chico Buarque vão encontrar-se finalmente. O poeta português admirava o músico e escritor brasileiro, que não chegou a conhecer. Conta Teresa Belo, sua mulher, ao jornal O Globo, que o autor de Homem de Palavra(s) encomendava muitos vinis do cantor aos amigos que viajavam para o Brasil.

Belo interessava-se muito por nomes da literatura brasileira como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, mas Chico Buarque era Chico Buarque. “Ficava muito comovido com as canções e admirava a postura política dele”, lembra Teresa Belo.

Agora, o cantor e compositor, um dos mais populares da música brasileira, é um dos convidados de um documentário sobre o poeta português que será lançado no Brasil até ao fim do ano. Vai ler dois dos seus poemas, Orla marítima e Oh as casas as casas as casas. O documentário Ruy Belo, era uma vez, de Nuno Costa Santos, reúne críticos e escritores dos dois lados do Atlântico à volta deste homem que sempre cruzou a poesia com a política ou a espiritualidade e que viria a morrer em 1978, aos 45 anos, deixando versos como estes: “É triste ir pela vida como quem/ regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro”.

Segundo o jornal brasileiro, o documentário de Costa Santos, faz parte de uma espécie de “operação Ruy Belo”, destinada a dar a conhecer ao público brasileiro um autor fundamental da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, a que chamam com frequência “poesia pós-Pessoa”. Dessa “operação” faz parte a primeira edição brasileira de toda a bibliografia do poeta, 35 anos depois da sua morte.

Nas estantes das livrarias brasileiras os seus novos leitores já podem encontrar Aquele Grande Rio Eufrates (1961), título de estreia, e os dois seguintes – O Problema da Habitação (1962) e Boca Bilíngue (1966). Mas até ao fim do ano a editora 7Letras promete pôr à venda os seis volumes que faltam para completar a integral do autor de A Margem da Alegria (1974), o homem que traduziu Borges e Lorca e que amava o mar. “Amei a mulher amei a terra amei o mar/ amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar/ De muitas delas de resto falei”, escreveu.

Cada um dos volumes lançados pela 7Letras, numa colecção organizada pelo escritor e crítico Manoel Ricardo de Lima, terá um prefácio de um poeta brasileiro diferente, procurando fazer a ponte entre o autor português dos anos 1960 e 70 e o leitor brasileiro contemporâneo.

Para o autor de um desses prefácios (o de Boca Bilíngue), Tarso de Melo, é urgente que os grandes poetas portugueses da segunda metade do século XX, com destaque para Belo, Sophia de Mello Breyner e Herberto Helder, sejam conhecidos no Brasil. “Esses autores são capazes de nos fazer rever não apenas a forma como nos relacionamos com a poesia portuguesa, mas com nossa própria poesia”, escreve o também poeta, lembrando que em Boca Bilíngue, Belo, então com 33 anos, demonstra o seu desencanto com um país mergulhado na ditadura do Estado Novo.

É por isso que nele podemos ler poemas como Morte ao meio-dia, com versos assim: “No meu país não acontece nada/ o corpo curva ao peso de uma alma que não sente/ Todos temos janela para o mar voltada/ o fisco vela e a palavra era para toda a gente”.

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Resenha sobre “Rabo de baleia”, de Alice Sant’Anna

Resenha sobre Rabo de baleia, de Alice Sant’Anna, que publiquei na revista portuguesa Ler de junho de 2013:

OS DIAS AGITADOS

            Quando publicou seu livro de estreia, Dobradura (7Letras), em 2008, a designação jovem poeta cabia muito bem a Alice Sant’Anna, nascida no Rio de Janeiro, em 1988. Afinal, trata-se de uma obra onde a inocência pueril se revela como uma de suas principais características. Desponta assim um frescor inquestionável, o que é uma de suas qualidades, embora também se apresentem alguns conflitos encapsulados.

            Contudo, por meio do recém-lançado Rabo de baleia (Cosac & Naify), a perspectiva do sujeito torna-se mais madura – mais sofrida, consequentemente – e seus poemas excluem quase de todo a docilidade predominante nos versos de estreia. Agora, encontra-se uma poética muitas vezes até mesmo violenta, refletindo de maneira contundente o desconcerto das relações do sujeito com o mundo e com o outro. Diante disso, a classificação jovem poeta não é mais conveniente: Alice Sant’Anna, em seu novo título, mostra-se uma poeta madura e consolida-se como uma das principais autoras de sua geração.

            As diferenças entre Rabo de baleia e Dobradura já podem ser observadas no corte do verso e na estrutura sintática das frases. No livro recém-lançado, os períodos foram construídos com imensa economia de pontuação, o que em diversos momentos concede mobilidade de leitura: há sequências de versos que podem ser lidas ao menos de duas maneiras. Porém, tais características de composição dos poemas – antes de tornarem-nos mais fluidos – conduz o leitor à percepção de diversas fraturas textuais e sugerem um universo pessoal desconcertado e tortuoso. Nesse sentido, versos fragmentados auxiliam na configuração desse cenário. Mesmo recorrendo à fantasia para escapar da rotina esmagadora, o sujeito não encontra na válvula de escape uma fuga plena em torno “da exaustão dos dias/ o corpo que chega exausto em casa/ com a mão esticada em busca/ de um copo d’água/ a urgência de seguir para um terça/ ou quarta boia, e a vontade/ é de abraçar um enorme/ rabo de baleia seguir com ela” (p. 7). A necessidade de outras boias mostra ao leitor a insuficiência da fuga como via de dissolvição do “tédio pavoroso” (p. 7).

            Em Rabo de baleia, é notável a investigação acerca das fraturas e a posterior constatação da fragilidade das coisas: “dente que bate na louça e trinca/ a língua apalpa por detrás/ procurando indício de rachadura/ na porcelana/ desliza na borda da gengiva/ o chá ainda quente na boca/ incisivos erguidos como prédios/ mas frágeis feito xícara/ casca de ovo/ a asa não se firma entre os dedos/ quer escorregar e se colar à sombra” (p. 36). Geralmente associado ao conforto, a hora do chá torna-se um momento do despontar da aflição e da angústia, sentimentos que recuperam o medo da sombra que havia em sua infância: “quando criança chorava ao ver a sombra/ jurava que era alguém insistente/ que apareceu sem ser convidado” (p. 36). O simples chá torna-se, portanto, um momento de investigação do humano, escapando, no entanto, do caráter confessional típico da lírica: a investigação se desenvolve da louça trincada à sombra, da concretude à abstração. O paralelismo entre os dois momentos – da adulta com a língua sobre a rachadura e da criança observando a sombra – firma uma carga dramática intensa no poema, mas ao mesmo tempo o objetiva parcialmente. É a partir da porcelana trincada que o temor emerge: o elemento externo, a xícara, estimula o tom memorialístico, remetendo-nos ao movimento dos fragmentos da madaleine no chá de tília proustiano. A imagem de Alice Sant’Anna, contudo, é mais antilírica.

            Além dessas questões, há sintomas evidentes de melancolia, como em “Winnipeg, mon amour” (“não acordo nunca/ desse mesmo sono […]”, p. 17), ou de um sentimento indefinido entre a exaustão – um traço recorrente no livro – e o desejo (“não é bem vontade o que tenho/ mas tampouco é falta de vontade”, p. 45). Há também nessa suspensão da dúvida alguma marca melancólica, algum indício de desgaste frente à incerteza. E dessa indefinição, dessa incerteza instabilizadora, nascem muitos fantasmas que nem mesmo um rabo de baleia é capaz de afastar.

 

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