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A flexibilização das leis trabalhistas

Nesta entrevista com o primeiro vice-presidente da Fiesp, Benjamin Steinbruch, realizada em 2014 por Fernando Rodrigues para o site Folha/Uol, é possível constatar algumas “ideias” dessa gente que gosta de adotar patos infláveis como forma de manifestação a favor do Brasil. Entre suas intenções para flexibilizar as leis trabalhistas, sugere a redução do horário de almoço. Conforme Benjamin Steinbruch, nos EUA é possível observar um trabalhador comendo um sanduíche com a mão esquerda e operando uma máquina com a direita. É assim que deve ser também no Brasil, conforme suas palavras. Para ele, o Brasil precisa alcançar um patamar de “vanguarda” no trabalho, esquecendo-se que vanguarda no trabalho corresponde à redução da carga horária, à distribuição do lucro das grandes empresas entre os seus funcionários etc.

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“Ouvir histórias; contar histórias; estar no mundo” – Entrevista com Luiz Ruffato

Reproduzo entrevista realizada por Mirhiane Mendes de Abreu com Luiz Ruffato, publicada na revista Pessoa:

Naquela tarde, pensei no seu primeiro livro, O homem que tece. “Um desenho do seu perfil?”, eu me perguntava, ouvindo aquela prosa fluida, de um narrador que entra e sai de casos com a fluência dos que sabem narrar. O livro compunha-se por poemas e Luiz Ruffato me disse já não possuir nenhum exemplar, mas, como se vê, seguiu por aí, tecendo histórias de um mundo vivido e imaginado. Não foi diferente naquela conversa, em que falou de si, da sua escrita, do seu tempo. Quem lê e quem ouve esse mineiro logo ingressa no universo da escrita e da narração, e reconhece o discurso de quem sabe o que quer e para onde vai:

 “Quer dizer que você é brasileira?”, “Brasileiríssima. E você é mineiro”, “Ué, como é que você sabe?”, “Só mineiro fala ‘Aqui’, e gargalhou entre dentes alvos, bem-feitos, sem falhas, que revelavam uma origem de moça-de-família, como eu suspeitava, dificilmente erro nos julgamentos, e, impensado, apelei pro meu lado cavalheiresco convidando ela pra comer alguma coisa […]”

“Lisboa cheira a sardinha no calor e castanha assada no frio, descobri isso revirando a cidade de cabeça-pra-baixo, de metro, de eléctro, de autocarro, de combio, de a-pé, sozinho ou ladeado pela Sheila. Com ela de-guia, visitamos um monte de sítios bestiais, o Castelo de São Jorge, o Elevador de Santa Justa, Belém (pra comer pastel), o Padrão dos Descobrimentos e o Aquário, na estação Oriente […]”

 Esses dois fragmentos de Estive em Lisboa e lembrei de você são expressivos: convidado para integrar a coleção Amores expressos (um projeto de escrita literária que levou escritores para diversos lugares do mundo), Ruffato deixou claro o que queria. O seu destino seria Paris. “Não! Lisboa é mais interessante para o que queria narrar.” “Por quê? Você é muito lido em Portugal?” – eu quis saber. “Não é isso: meus livros vendem mais na Alemanha e na França. Os elementos temáticos e estilísticos que eu queria explorar funcionariam melhor em Portugal. Adoro Paris, mas Lisboa seria mais adequada ao projeto”. E o projeto consistia justamente em narrar as desventuras de Serginho, um mineiro que vai para Portugal em busca de melhores oportunidades de trabalho, após ininterruptos insucessos e uma grande frustração amorosa. Enquanto o narrador experimenta a linguagem, Serginho experimenta outros ângulos e sensações dessa mesma língua, tão comum e, paradoxalmente, tão estranha… Desterritorializado e estereotipado, Serginho busca o consolo em Sheila, gentil prostituta que interpreta bem a condição de quem “nem nome tem”.

Enquanto conversávamos, vi vários Ruffatos ali (o pai, o cronista, o mineiro-que-mora-em São-Paulo, o homem público, o leitor, o narrador, o viajante, o organizador de antologias e festivais literários, o polêmico) e todos sabem a extensão do seu trabalho, do seu papel como figura pública: “Minha pretensão é levar para a literatura a discussão do que ocorre no Brasil, por isso, quis fazer uma obra com base na representação do universo dos trabalhadores urbanos e a busca de uma forma de escrita diferente da imposta pelo romance burguês. O Estive em Lisboa… é parte dessa preocupação, que está também em Eles eram muito cavalos, em que tematizo o mosaico humano da cidade São Paulo.”

Eles eram muito cavalos dialoga diretamente com um fragmento de Cecília Meireles, citado na epígrafe do livro – “eles eram muito cavalos, mas ninguém mais sabe os seus nomes, sua pelagem, sua origem…” – e com um versículo bíblico extraído do Salmo 82: “Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?”. A inquietante sensação de injustiça vivida por rostos apagados, por sujeitos despersonalizados na grande São Paulo, é narrada em 69 textos-curtos que são, de alguma forma, experimentais. Colando o conteúdo à forma para expressar a espiral de tipos e sotaques próprios do caos urbano dessa megalópole, o livro – premiado e muito discutido pela crítica pela sua experiência formal – reconfigura elementos significativos da sua visão de mundo e está diretamente relacionado aos seus anos de formação:

 

“O meu mundo foi o dos bairros operários de Cataguases. Meus amigos eram filhos de operários e muitos deles eram também operários. Minha educação se deu nos colégios públicos de Cataguases, destinados aos mais pobres. Eram escolas muito ruins. Meu pai era pipoqueiro e meu destino seria esse também: trabalhei em botequim, no setor de algodão hidrófilo, como balconista e também fui pipoqueiro, ajudante de meu pai. A minha educação formal se deu nessa circunstância. Foi em Juiz de Fora que tive meu primeiro encontro com a política. Estudei como um louco para o vestibular e passei em primeiro lugar no curso de Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora. Trabalhava de dia e fazia cursinho à noite. Na época de fazer a inscrição para o vestibular, eu não sabia o que fazer e algumas pessoas falavam em Comunicação, foi o que fiz. Para me manter na cidade, arranjei um emprego no Diário Mercantil, comecei a escrever sistematicamente e a fazer política estudantil. Eu era interessante para uma certa esquerda por ser representante do proletariado.

Foi nesse momento que me dei conta que a literatura brasileira não tratava das pessoas pobres que eu conhecia e por uma razão muito simples: os escritores, em geral, vêm da classe média alta e não conhecem essa realidade. O bandido e o marginal podem ser personagens idealizadas pela classe média alta, mas o trabalhador, aquele que pega ônibus, bate cartão, não tem vez. Eu conheço essas pessoas e, como todo escritor, escrevo a partir das minhas experiências. Foi o que trouxe para Eles eram muito cavalos: o livro é um pouco da minha experiência de uma pessoa que gosta de caminhar pela cidade e ouvir as histórias dos outros.”

 Ouvir histórias; contar histórias; estar no mundo. Esse é o caminho de Ruffato ao escrever suas crônicas para El-País Brasil, falando sobre o que vê e percebe do seu tempo, sem fazer concessões a partido político algum. O olhar para o contemporâneo também estrutura o seu livro infantil, A história verdadeira do sapo Luiz. “Não é livro infantil”, posicionou-se: “é uma narrativa ilustrada.” Indaguei-lhe um pouco sobre literatura com destinatário (“literatura é boa ou má”, disse ele) e sobre a representação, tema inerente ao seu conjunto narrativo: “A minha escrita é parte de uma decisão política e uma decisão estética também. Não acredito que estética e política sejam coisas separadas”. E como, para se ter acesso à literatura é preciso aprender a ler, falamos sobre a escola brasileira e a responsabilidade de se formar leitores: “A minha formação foi muito errática. Não sei o que propor.” Mas eu insisti na pergunta, queria saber como ele agiria em sala de aula: “Acho que deve se oferecer o maior número possível de livros aos alunos, variedade de gêneros e épocas”. “Acredito piamente que a literatura seja capaz de mudar o mundo”, idealizou.

E foi assim que chegamos ao polêmico discurso proferido na Feira de Frankfurt, em 2013, quando o Brasil foi um dos homenageados. A análise aguda sobre os problemas que o país enfrenta causou incômodo à plateia brasileira que, na ocasião, desejava algo mais festivo. Muito se falou sobre esse discurso, que causou um debate acalorado. Para se obter uma ideia mais precisa a respeito dessas considerações que, no fim das contas, sustentam seu percurso narrativo e a boa discussão que tivemos sobre o tema, transcrevo aqui um trecho:

“O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito entre as pessoas. […].

Nós somos um país paradoxal.

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas […]; ora como um lugar execrável, de violência urbana. […].

Volto então à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?”

Foi assim, entre política e literatura, que prosseguiu nossa conversa: “Até hoje não entendi o porquê de tanto barulho. Não falei nada de novo: falei da bruta desigualdade social, da violência contra negros e mulheres. Falei que a educação brasileira é um artigo de luxo. Onde está a novidade nisso? Onde seria o lugar para discutir essas questões? Eu pensei que fosse entre intelectuais…”.

Estive em Lisboa… voltou ao tema por esse caminho. Livro em que o jogo com a realidade se impõe de tal forma que, empregando recursos usados por escritores da narrativa tradicional, abre-se com uma nota, afirmando: “o que se segue é o depoimento, minimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio, nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969. […]”. Assim como a nota, a desventura amorosa vivida por Sergio e Sheila é transfiguração de um real imaginado. Amor deslocado no espaço e na própria condição amorosa, que movimenta esse simulacro do real. A obra de Ruffato, em síntese, expõe de forma simétrica o jogo e a experiência estética, de que a linguagem é parte indissociável.

Por falar em linguagem, tocamos aqui num ponto importante das ideias de Ruffato e sua concepção de escrita. “Literatura é fundamental”, insiste. E, ao afirmar isso, demonstra gosto pela leitura de José de Alencar e Mário de Andrade, autores que admira pelo projeto de linguagem. Discutimos sobre o modernismo brasileiro. E divergimos: “Oswald de Andrade é o grande escritor do nosso modernismo”, opinião controversa. Comentamos sobre a pluralidade dos escritores daquelas primeiras décadas do século XX , recuamos ainda mais no tempo até chegarmos a Machado de Assis: “leio tudo o que posso desse homem genial”, afirmou. “Machado decidiu que queria se tornar o grande escritor. E conseguiu.”

Pareceu-me que, para Ruffato, ser escritor é ser um intelectual público, significa intervir, ocupar os espaços para dar voz a quem não a tem. Esse depoimento vai ao encontro dos seus temas, das suas leituras, do seu projeto de escrita. Literatura e política ordenam seu olhar sobre o mundo. Os vários Ruffatos que vi ali, naquela tarde, compõem um homem fluente na sua prosa, tranquilo para falar da sua inaptidão para lidar com blogs, com trânsito e que, ainda assim, procura digerir o caos social. São nuances da mesma preocupação: um homem acompanhado por livros e que deseja tecer histórias que lutem contra a mesquinhez do mundo.

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Muitas dúvidas – Bernardo Carvalho

Extraído do jornal Rascunho:

Bernardo Carvalho é um dos mais importantes autores contemporâneos brasileiros. Nascido em 1960, no Rio de Janeiro, estreou com os contos de Aberração, em 1993. A partir de Onze (1995), passa a se dedicar integralmente ao romance. Desde então, publicou outros dez livros, com destaque para Mongólia (2003) e Nove noites (2002). Sua obra está traduzida para o inglês, francês, espanhol, italiano, entre outras línguas. E já recebeu os principais prêmios literários do Brasil. Em 2013, Reprodução venceu o Jabuti na categoria romance.

Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando entendi que não sabia fazer outra coisa.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Que manias?

Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
Jornal e ficção.

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
Ilusões perdidas [de Balzac].

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Longe daquilo sobre o que eu escrevo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Silêncio.

O que considera um dia de trabalho produtivo?
Duas páginas e alguma ideia sobre as duas no dia seguinte.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Fazer sentido.

Qual o maior inimigo de um escritor?
A impaciência.

O que mais o incomoda no meio literário?
Levar-se demasiado a sério.

Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Os poetas, em geral.

Um livro imprescindível e um descartável.
À sombra do vulcão [de Malcolm Lowry]. Os de autoajuda, em geral.

Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A autoindulgência.

Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Todos entram.

Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Não lembro. Talvez “São Paulo” (como o Bussunda, falando sobre o lugar mais inusitado onde fez sexo).

Quando a inspiração não vem…
Tento trabalhar.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Herman Melville.

O que é um bom leitor?
O que lê sem preconceito.

O que te dá medo?
Parar de escrever.

O que te faz feliz?
Escrever.

Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
Muitas dúvidas.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não pensar nisso.

A literatura tem alguma obrigação?
Não.

Qual o limite da ficção?
Ser ficção.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Dependendo das intenções dele, levaria ao Jair Bolsonaro, ao Marco Feliciano, ao Silas Malafaia ou a algum de seus colegas.

• O que você espera da eternidade?
Voltar sempre.

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Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro

Entrevista realizada por Juvenal Savian Filho e Wilker Sousa para a revista Cult:

“Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual.” Essas palavras são do antropólogo e pensador francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) a respeito da obra do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Professor de antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele é reconhecido nacional e internacionalmente por seus estudos em etnologia indígena – o ensaio “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”, publicado em 1996, recebeu traduções para diversas línguas e foi incluído em duas antologias britânicas de textos-chave da disciplina, a primeira centrada na antropologia da religião, a outra dedicada à teoria antropológica geral. Em 2009, publicou na França o livro Métaphysiques Cannibales, no qual resume as implicações filosóficas e políticas de suas pesquisas entre os povos indígenas brasileiros. No Brasil, seu livro mais conhecido é A Inconstância da Alma Selvagem, publicado em 2002, que reúne estudos escritos ao longo de sua carreira até então. Uma segunda coleção, trazendo seus ensaios mais recentes, está em preparação, devendo ser publicada pela editora CosacNaify em 2012, sob o título A Onça e a Diferença.

Seu currículo inclui atividades intelectuais em âmbito mundial. Foi professor-associado nas universidades de Manchester e Chicago e ocupou a cátedra Simón Bolívar de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge. Foi diretor de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, tornando-se membro permanente da Equipe de Pesquisa em Etnologia Ameríndia. Ainda na França, foi agraciado em 1998 com o Prix da La Francophonie, concedido pela Academia Francesa.

Aos 59 anos de idade, construiu uma obra potente e irretocável. Viveiros de Castro recebeu a reportagem da CULT em sua sala no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e falou sobre seu trabalho, a atual política indigenista, a crise ambiental e a inserção do Brasil na economia mundial.

CULT – Como se dá seu trabalho de campo e com que regularidade o senhor visita as comunidades indígenas?
Eduardo Viveiros de Castro –
O principal de minhas pesquisas de campo com os povos indígenas da Amazônia fez-se entre os anos 1975 e 1988. Estive por breves períodos entre os Yawalapiti do Parque do Xingu, em Mato Grosso (hoje o estado deveria ser chamado de Mato Ralo), os Kulina do Rio Purus, no Acre, os ianomâmis da Serra de Surucucus, em Roraima, e finalmente entre os Araweté do Igarapé Ipixuna, no Médio Xingu, Pará. Apenas entre os Araweté realizei o que se pode chamar de uma pesquisa etnográfica, que requer uma convivência demorada com o povo estudado, o aprendizado da língua nativa (no meu caso, bem incipiente) e o envolvimento emocional e cognitivo – o compromisso existencial – com as questões e preocupações da vida da comunidade que generosamente aceitou receber o antropólogo. Minha estada com os Araweté não foi tão longa quanto deveria: morei no Ipixuna por cerca de dez meses, entre 1981 e 1983, quando precisei deixar a área por motivos de saúde (malárias repetidas). Depois voltei algumas vezes, em visitas curtas, perfazendo 14 meses até 1995. Isto é, na melhor das hipóteses, a metade do que se precisa para fazer um bom trabalho de campo. Mas cada um faz o que pode. Há quem aprenda mais depressa, outros precisam de mais tempo. Além disso, há povos que demandam muitos anos de convivência até que as coisas comecem a fazer sentido para o pesquisador, e outros que são mais abertos e mais diretos. Por fim, tudo depende daquilo que se quer estudar. De qualquer maneira, não me vejo como um grande pesquisador de campo. Sou um etnógrafo apenas razoável.

Há cerca de um mês, após 15 anos de ausência, voltei ao Ipixuna para uma rápida visita. A desculpa para uma ausência tão demorada, a rigor indesculpável, foi que a vida me levou para longe da Amazônia: ensino, família, períodos de residência no exterior, o lento trabalho da escrita, o peso da idade… Isso para não mencionar algumas dificuldades que acabei tendo com a autoridade indigenista local, em Altamira (PA), por causa das empresas evangélicas que queriam se instalar entre os Araweté. Aos olhos desses missionários, eu era uma espécie de Satã que estava ali entravando a almejada conquista espiritual dos índios. Assim que parei de ir com mais frequência ao Ipixuna, esses missionários conseguiram se insinuar nas aldeias, com a complacência da administração indigenista. O estrago que causaram, até agora, ainda não parece ter sido grande demais. O mérito, naturalmente, é dos próprios Araweté.

Retornei a convite dos Araweté – não foi o primeiro que me fizeram, nesses 15 anos – e da nova administração da Funai em Altamira, com quem tenho a firme intenção de colaborar, nessa fase histórica tão difícil que se abre agora para os povos indígenas do Médio Xingu, com a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Está na hora também de passar o bastão e apresentar alguns de meus estudantes do Museu Nacional aos Araweté, para que possam continuar o trabalho.
?
O senhor concorda que, nas últimas duas ou três décadas, os “índios” têm aparecido mais no debate político e nos veículos de comunicação? Por que isso demorou tanto tempo?
Em seu livro Tristes Trópicos, Lévi-Strauss conta uma anedota reveladora. Era o começo dos anos 1930, ele estava de partida para o Brasil, onde ia ensinar sociologia na USP. Lévi-Strauss encontra o embaixador brasileiro na França, Luiz de Souza Dantas, em um jantar de cerimônia, e lhe pergunta sobre os índios brasileiros, que já então muito lhe interessavam. Ao perguntar ao embaixador como deveria proceder para visitar alguma comunidade indígena, este lhe respondeu: “Ah, meu senhor, no Brasil há muito tempo não há mais índios. Essa é uma história muito triste, mas o fato é que os índios foram exterminados pelos portugueses, pelos colonizadores, e hoje não há mais índios no Brasil. É um capítulo muito triste da história brasileira. Há muitas coisas apaixonantes a serem vistas no Brasil, mas índios, não há mais um só…” Lévi-

-Strauss conta que, naturalmente, quando chegou ao Brasil, descobriu que não era bem assim.

Isso não quer dizer que o embaixador (cuja aparência física, diz maliciosamente Lévi-Strauss, indicava uma óbvia contribuição indígena) estivesse mentindo deliberadamente, procurando negar uma realidade vergonhosa mas sabida. De fato, o embaixador não sabia que havia índios no Brasil; o Brasil que ele representava diplomaticamente não continha índios. O Brasil era um país desesperado para ser moderno, então não havia, porque não podia haver, mais selvagens aqui. Outro fato curioso: em 1970 (portanto, 40 anos depois do diálogo de Lévi-Strauss com o embaixador), o censo indígena da Funai indicava, para o estado do Acre, a notável população de “zero indivíduo”. Oficialmente, não havia mais índios no Acre. Aí começam a abrir as estradas por lá, a derrubar a mata, a botar boi, e eis que começam a aparecer índios a atravancar a expansão dos pastos e a destruição da floresta. (Junto com índios, como se sabe, começaram também a aparecer os seringueiros, que se imaginava como mais outra “raça” em extinção. E bem que se tentou extingui-los naquela época – lembrem-se de Chico Mendes.) Ora, índios sempre houve lá no Acre, todo mundo no Acre sabia que eles estavam lá, mas eles não existiam em Brasília, ou melhor, para Brasília. Agora sabe-se e aceita-se que o estado do Acre abriga, atualmente, 14 povos indígenas, alguns de significativa expressão demográfica, como os Kaxinauá e os Kulina. O Acre é um estado profundamente indígena, dos pontos de vista cultural, histórico e demográfico. Na verdade, ele é hoje o principal exportador de práticas e símbolos indígenas (mais ou menos transformados) para o Brasil urbano atual.

A que mais se deve essa redescoberta dos índios nas últimas décadas?
Tudo começou com uma iniciativa fracassada do governo militar, em 1978, que visava extinguir os índios, entenda-se, acelerar o processo de desconhecimento da população indígena, consagrar seu não reconhecimento como um componente diferenciado dentro da chamada “comunhão nacional”. Completar o processo de “assimilação”, isto é, de desindianização, que se entendia como inexorável e desejável ao mesmo tempo. O governo propôs um projeto de lei para “emancipar” os índios, isto é, extinguir a tutela oficial do Estado que os protegia. O verdadeiro objetivo da medida era liberar as terras indígenas, terras públicas, de domínio da União, inalienáveis, para que entrassem no mercado fundiário capitalista. Ao declarar que esta ou aquela população indígena não “era mais” índia, porque seus membros falavam português, ou usavam roupa etc., o que o projeto de lei pretendia era entregar as terras públicas de posse dos índios nas mãos dos interesses proprietariais particulares. Simplesmente se queria tirar os índios da frente do trator do capital: em vez de índio, que venham o gado, a soja, os madeireiros, o latifúndio, o mercado de terras, a mineração, a estrada, a poluição e tudo que vem junto. E que muitos chamam de “desenvolvimento”.

Mas, naquele momento, os idos de 1978, quando estava se consolidando a resistência organizada à ditadura, muito da insatisfação política da classe média, dos intelectuais principalmente, se cristalizou em torno da questão indígena, como se ela fosse uma espécie de emblema do destino de todos os brasileiros. É também nesse momento que tomam ímpeto o movimento negro, o movimento feminista, a politização ativa da orientação sexual, a emergência de diversas minorias, diversas diversidades por assim dizer: étnicas, locais, sexuais, ocupacionais, culturais etc. A luta de classes assumia cada vez mais o caráter de uma integração parcial de uma série de diferenciais traçados sobre outros eixos que a economia pura e simples (as relações de produção). Começam a surgir outros atores políticos. É o momento da especulação e da experimentação generalizadas: outras práticas do laço social, outras imagens da sociedade, que não se reduzem ao par Estado-classes sociais, mas que envolvem outras formas de vida, outros territórios existenciais. Os índios foram importantes por sua força exemplar, seu poder de condensação simbólica. Eles apareceram como portadores de outro projeto de sociedade, de outra solução de vida que contraprojetava uma imagem crítica da nossa.

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Entrevista de Roland Barthes

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“Roberto Schwarz: Um crítico na periferia do capitalismo”

Entrevista de Roberto Schwarz realizada por Luiz Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura para a edição 98 – abril de 2004 da Pesquisa Fapesp [via Bruna Oliveira]:

Gostaria que você falasse um pouco sobre sua formação e personagens que mais o influenciaram nessa fase.

Meus pais eram austríacos, intelectuais de esquerda, ateus e judeus. Quando a Alemanha anexou a Áustria, tiveram que emigrar. Se não fosse isso, meu pai, que era um homem completamente literário, teria sido escritor e professor. Embora tivéssemos chegado ao Brasil sem nada, ele logo começou a refazer uma boa biblioteca alemã, que tenho até hoje. Ele morreu cedo, quando eu tinha 15 anos. O Anatol Rosenfeld, que era amigo dele e da família, passou a acompanhar os meus estudos e a sugerir leituras. Durante muitos anos ele jantou em casa aos domingos, que passaram a ser um dia obrigatório de revisão da semana e discussões. Apesar da grande diferença de idade, ficamos muito amigos.

O Anatol tinha um grupo…

Sim, ele dava um curso de filosofia na casa do Jacob Guinsburg. O grupo se reunia uma vez por semana, e eu comecei a participar também quando tinha 18 anos, pouco antes de entrar na faculdade. Isso durou muitos e muitos anos, os alunos liam um trecho de algum filósofo uma vez por semana e o Anatol comentava. Foi interessante essa sua maneira de arranjar a vida: em alguns cursos ele antes ia jantar, o que era bom para a dona da casa, que tinha o jantar animado intelectualmente, e era bom para ele, que… jantava. E depois ele dava o curso.

E aí você entrou no curso de Ciências Sociais da USP.

Foi, em 1957, por sugestão também do Anatol. Eu estava no último ano do secundário, um pouco incerto se fazia Letras, Filosofia ou Ciências Sociais. O Anatol, muito objetivo, me disse que fosse à faculdade assistir a algumas aulas antes de decidir. Assisti a uma aula de literatura, de um professor cujo nome não vou dizer, e desisti de fazer Letras. Assisti a uma aula do Cruz Costa, que fazia piada atrás de piada e me deixou um pouco assim… E assisti a uma aula da Paula Beiguelman, em Política, muito bem preparada e interessante. Aí me decidi pelas Ciências Sociais.

Já no curso de Ciências Sociais você participou daquele grupo do seminário do Capital?

O seminário começou em 1958. Foi iniciativa de um grupo de professores jovens, vindos das Ciências Sociais, da Filosofia, da História e da Economia, que tiveram a boa ideia de incluir também alguns alunos. Com isso o seminário já nasceu multidisciplinar e espichado para a geração seguinte. Marx na época era pouco ou nada ensinado, embora muitos professores nessa área fossem de esquerda. De modo que a decisão de estudar a sério a sua obra tinha alcance estratégico. No núcleo inicial estavam Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Fernando Novais, Paul Singer e Giannotti. Os alunos mais assíduos eram Leôncio Martins Rodrigues, Francisco Weffort, Gabriel Bollaffi, Michael Löwy, Bento Prado e eu.

 

E qual foi o peso do seminário em sua formação, em sua visão de mundo?

Foi decisivo. Ao contrário do que diz meu amigo Giannotti, estudar Marx na época não era assimilar um clássico entre outros. Por um lado, tratava-se de apostar na reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea. Por outro, tomava-se distância da autoridade dos Partidos Comunistas na matéria, que promoviam uma compreensão bisonha de Marx, imposta como um dogma. Havia também a excitação de descobrir e afirmar a superioridade intelectual de um autor profundamente incômodo para a academia bem-pensante e para a ordem em geral. Na iniciativa do seminário havia algo de inusitado e também de precário, além de premonitório. Poucos sabiam alemão, não tínhamos familiaridade com o contexto cultural de Marx, a bibliografia moderna não estava disponível, para não dizer que estava desaparecida. De um ponto de vista universitário “normal”, não estávamos preparados para a empreitada. Em compensação havia a sintonia com a progressiva radicalização do país, que entrara em movimento, e talvez com a corrente de fundo que levaria o mundo a 1968. Até certo ponto o despreparo foi uma vantagem, pois permitiu que enfrentássemos com espírito livre as dificuldades que a experiência brasileira opunha aos esquemas marxistas.

 

Como era a dinâmica do seminário?

O grupo se reunia de quinze em quinze dias e discutia mais ou menos 20 páginas por vez. A discussão ia de questões elementares de compreensão a problemas cabeludos, com conseqüências teóricas e políticas. Como os professores estavam em idade de escrever as suas teses, que no geral foram de assunto brasileiro, começou a se configurar no seminário a distância entre a construção marxista e a experiência histórica do país. O seminário teve a força de não desconhecer a discrepância e, também, de não considerar que ela anulava a melhor teoria crítica da sociedade contemporânea. Era preciso refletir a respeito, ver o desajuste como um problema fecundo e, talvez, como parte das desigualdades do desenvolvimento do capitalismo. Marx não podia ser aplicado tal e qual ao Brasil, que entretanto fazia parte do universo do capital. Estava surgindo o tema da reprodução moderna do atraso, segundo o qual há formas sociais ditas atrasadas que na verdade fazem parte da reprodução da sociedade contemporânea, em âmbito nacional e internacional. Embora a obra correspondente não tenha sido escrita, estas observações ligadas à experiência das nações periféricas têm relevância histórico-mundial, para uma apreciação sóbria e não-ideológica das realidades do progresso, o qual é mais perverso do que consta. Quando chegou a minha vez de fazer tese e de analisar os romances de Machado de Assis, eu me havia impregnado muito deste modo de ver.

Já havia seu interesse pela literatura, mas em termos formais como se deu sua ida para a teoria e a crítica literária?

Fui aluno de Antonio Candido no segundo ano de Ciências Sociais, em 1958, no último ano em que ele deu Sociologia. No ano seguinte comecei a ficar abatido com o lado empírico da pesquisa sociológica, os levantamentos e as tabulações não eram comigo. Nessa altura, Antonio Candido passara da Sociologia para as Letras e estava ensinando Literatura Brasileira em Assis. Ruminei o exemplo e fui até lá me queixar da vida e pedir conselho, pois gostava mesmo é de literatura. Ficou mais ou menos combinado que quando eu terminasse o curso faria um mestrado em Literatura Comparada no exterior e depois iria trabalhar com ele na USP. Nessa época eu já escrevia um pouco de crítica literária para jornal.

 

Qual jornal?

Um suplemento literário da Última Hora, onde publiquei um artigo sobre O amanuense Belmiro, romance sobre o qual o Antonio Candido havia escrito anos antes. Uma amiga espoleta levou o trabalho ao professor, contando que eu achava o artigo dele parecido com o meu. Ele achou graça, leu e me convidou para colaborar no Suplemento Literário do Estadão, que era dirigido pelo Décio de Almeida Prado. Assim, quando fui a Assis procurar conselho, ele tinha ideia do que eu andava fazendo.

 

A ida para o exterior era porque na época não havia mestrado aqui?
A pós-graduação estava começando. Na época só fazia mestrado e doutorado o pessoal que já estava trabalhando nalguma cadeira. Como eu vinha de Ciências Sociais, para ensinar em Letras precisava de um título apropriado. Fui aos Estados Unidos fazer um mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, na Universidade de Yale. Na volta, em 63, pouco antes do golpe, comecei a trabalhar na Teoria Literária, que era uma novidade na USP.

 

E, nesse começo de trabalho com Antonio Candido, como é que se delineiam seus temas de trabalho?

Os primeiros anos são sempre suados. Preparar cursos, aprender o suficiente para ensinar, no começo não é fácil. Mas a idéia básica de meu trabalho eu tive cedo. Foi mais ou menos o seguinte: eu lia Machado de Assis e achava a ironia dele especial. Tinha a impressão de que havia naquele tipo de humorismo, de gracinha metódica, alguma coisa brasileira. Então eu saí atrás disso. Combinei a tentativa de descrever a ironia de Machado com a intuição de que ela seria nacional – o que restava explicar. Combinei um close reading dessa ironia com a teoria do Brasil do seminário do Capital. A ideia de que a substância da ironia machadiana tinha a ver com a mistura de liberalismo e escravismo no Brasil me veio cedo, antes de 64. Agora, daí a escrever sobre isso, vai um pedaço.

 

E quanto ao doutorado?

Fiz na Universidade Paris III, Sorbonne. O meu tema lá foi Ao vencedor, as batatas. O livro é de 1977. Quando voltei, já estava publicado.

 

A sua ida para a França decorreu, na verdade, da repressão política que a ditadura instaurou no país. Como foi sua experiência de exílio?

A França foi camarada com os refugiados, que foram chegando por ondas, conforme as ditaduras iam tomando conta da América Latina. Dentro do desastre geral, a verdade é que o exílio era também muito interessante, apresentava os latino-americanos uns aos outros, e mesmo os brasileiros das diferentes regiões. O ar estava cheio dos événements de mai, os acontecimentos de 1968. Para quem não estivesse com a vida quebrada, ou sob pressão material excessiva, e para quem tivesse disciplina para retomar os estudos, foram anos bons.

 

Para chegar ao ápice de sua investigação sobre a relação entre a ironia de Machado de Assis, o comportamento da elite brasileira e, enfim, a estrutura social do país, ou em outras palavras, para chegar a Um mestre na periferia do capitalismo, você gastou mais uns 11 anos, não é verdade?

Sou mais lento do que devia.

 

Em alguma medida há pioneirismo no trabalho de Antonio Candido quando ele lança um olhar para a literatura atravessado por uma visão mais sociológica do país? Ou isso é uma prática geral na crítica, que ele explicita melhor?

Eu inverteria os termos da questão: Antonio Candido lança à visão histórico-sociológica do país – que conhece como poucos – um olhar atravessado pela experiência e pela análise literárias, em cujo valor de revelação ele acredita e a que deve as suas descobertas. O pioneirismo está aí, nessa inversão, que dá cidadania plena ao ângulo estético. Vamos por partes. Que a literatura faça parte da sociedade ou que se conheça a literatura através da sociedade e a sociedade através da literatura, são teses capitais do século XIX, sem as quais, aliás, a importância especificamente moderna da literatura fica incompreensível. Elas estão na origem de visões geniais e dos piores calhamaços. Em seguida se tornaram o lugar-comum que sustenta a historiografia literária convencional. Dentro desse quadro, o traço que distingue a crítica dialética, e que a torna especial, é que ela desbanaliza e tensiona essa inerência recíproca dos pólos, sem suprimi-la. O que for óbvio, para ela não vale a pena. Se não for preciso adivinhar, pesquisar, construir, recusar aparências, consubstanciar intuições difíceis, a crítica não é crítica. Para a crítica dialética o trabalho da figuração literária é um modo substantivo de pensamento, uma via sui generis de pesquisa, que aspira à consistência e tem exigência máxima. O resultado não é a simples reiteração da experiência cotidiana, a cuja prepotência se opõe, cujas contradições explicita, cujas tendências acentua, com decisivo resultado de clarificação. Em suma, em termos de método, o ponto de partida está na configuração da obra, com as luzes que lhe são próprias, e não na sociedade.

 

Ao contrário do que dizem os detratores dessa crítica.

É isso. Ela parte da análise estética e busca o não-evidente, o resultado do que o trabalho formal do artista configurou. Ao passo que a posição tradicional, ou positivista, que também vai se renovando e continua presente com outros nomes, se limita aos conteúdos brutos, procurando o mesmo na sociedade e nas obras, vistas em termos redundantes, de confirmação recíproca direta.

 

Isso você já dizia com 23 anos, no artigo sobre o psicologismo na poética de Mário de Andrade.

A verdade é que não lembro. Retomando o fio, há uma fórmula de Lukács, segundo a qual o social na obra está na forma. Não que os conteúdos não sejam sociais, mas a forma, ao trabalhá-los e organizá-los, ou também ao ser infletida por eles, configura algo de mais geral, análogo à precedência da sociedade sobre os seus conteúdos separados. Se as obras interessam, é porque se organizam de um modo revelador, que algum fundamento tem na organização do mundo – fundamento a descobrir caso a caso. Como a maior parte da historiografia literária é de inspiração nacional e como a nação até outro dia era um horizonte quase auto-evidente, criou-se uma espécie de certeza infundada, segundo a qual o espaço a que a literatura e as formas literárias se referem é também ele nacional. Ora, a literatura mais audaciosa, justamente por ter aversão às mentiras do oficialismo e do nacionalismo, e por adivinhar o avanço de dimensões extranacionais da civilização burguesa, não cabe nesse quadro. No caso brasileiro, a referência nacional tem uma realidade própria, de tipo diverso, que continuou efetiva (até hoje?) e catalisou uma parte importante da invenção formal. Em parte por causa do complexo de país novo, que fazia da criação de uma literatura nacional um projeto deliberado. Basta lembrar o pitoresquismo programático dos românticos, ou a tentativa machadiana – descoberta por John Gledson – de maquinar intrigas com relevância nacional, ou o Naturalismo com o seu trópico científico-alegórico, ou a invenção modernista de logotipos nacionais, como o Pau Brasil, a Negra e Macunaíma. A questão fica mais interessante quando a reconhecemos fora da esfera do projeto nacional assumido, numa certa gama de inflexões, problemas, reações etc. É como se a matriz nacional se impusesse inconscientemente, pela força das coisas, ou melhor, como conseqüência da peculiaridade da estrutura social do país, que gera uma problemática social, lingüística, política e histórica singular, com a qual nos debatemos e à qual nos cabe responder, queiramos ou não. Ao deixar de lado ou ao fazer da intenção do autor um ingrediente entre outros, a análise histórico-estrutural coloca-se no terreno das configurações e dos funcionamentos objetivos, cuja dinâmica não corre em trilhos previstos, podendo levar aonde o autor não imaginava. A referência é nacional, mas sem garantia de final feliz. Essa é uma consciência crítica adulta, segundo a qual não fazemos o que queremos, ou fazemos o que não queremos, e não obstante pagamos a conta. Uma posição esclarecida e desabusada, que se torna modelo para a compreensão estética e social quando fica evidente que a sociedade burguesa não se governa a não ser superficialmente, ao passo que a sua superação não está à vista. Ainda aqui o passo à frente foi dado por Antonio Candido, no admirável ensaio sobre O cortiço, ainda não devidamente explorado. Ele mostrou que o autor pensava estar romanceando o processo brasileiro de guerra e acomodação entre as raças, em conformidade com as teorias racistas do Naturalismo, mas que na verdade, conduzido pela lógica da ficção, mostrava um processo primitivo de exploração econômica e formação de classes, que se encaminhava de um modo bárbaro e desmentia as ilusões raciais e nacionais do romancista. O curso das coisas é nacional, mas difere do previsto pelo escritor.

 

O que significa sua interrogação “até hoje?”, quando aborda a pretensão de fundação nacional dos grandes textos brasileiros?

A crítica dialética supõe obras que sejam mais ou menos fechadas e altamente estruturadas. Na literatura brasileira não há muitas que convidem a uma análise desse tipo. Quando Antonio Candido resolveu estudar nessa veia as Memórias de um sargento de milícias, estava escolhendo o caminho difícil e levando ao extremo uma posição crítica de ponta. A ousadia foi pouco notada, porque o romance – divertido e despretensioso – não faz pensar nessa ordem de tentativas. Manoel Antônio de Almeida não só não queria fazer o que o crítico descobriu, como se movia num plano incomparavelmente mais modesto. Essa desproporção é um erro? Pelo contrário, ela tira as conseqüências de uma certa ideia de forma objetiva, que não coincide com as intenções do autor, as quais pode exceder e contrariar amplamente. Uma ideia de forma e de análise que o crítico compartilha com uns poucos mestres da crítica dialética. Os dois ensaios centrais de Antonio Candido, sobre o Sargento de milícias e O cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras, descobrem a sua força e relevância num plano que não teria ocorrido aos respectivos autores.

Essa é uma visão propriamente marxista, não?

No essencial, penso que é, embora a terminologia não seja, ou seja só em parte. A parte boa da tradição marxista manda acreditar mais na configuração objetiva das obras que nas convicções ou posições políticas dos escritores. Há uma afirmação célebre de Marx, em que ele diz ter aprendido mais com os romances de Balzac do que com a obra dos economistas, isso embora Balzac seja conservador. Para além das preferências, há sobretudo uma afinidade de fundo na concepção da forma objetiva, seja social, seja estética: conforme o caso, o seu dinamismo interno se realiza não só contra, mas também através das ilusões dos interessados (o racismo de Aluísio, por exemplo, faz parte da força com que O cortiço mostra que o problema é de classe, e não de raça). O modelo é o ciclo do capital, que se realiza – na expressão de Marx – “atrás das costas” dos participantes, levados à crise contra a sua vontade. Mas voltando à sua pergunta: esse tipo de crítica supõe obras e sociedades muito estruturadas, com dinamismo próprio. Trata-se de enxergar uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de refletir a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa ideia de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte – talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a ideia de arte mudou, e é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo…

 

Penso que existe ainda a intenção dos escritores de produzirem alguma coisa que traga até as palavras o sentimento desse presente de relações e valores tão esgarçados, confuso, violento etc. Por que, então, não se chega a essa obra capaz de apresentar uma relação bem íntima entre forma do texto e forma social?

Também não me convenço de que não seja mais possível. Mas é fato que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no sentido em que você podia dizer “essa é a sociedade brasileira”, está deixando de ser efetiva, de ser verdadeira. Por exemplo, o caso…

 

Vamos pegar o caso de Cidade de Deus.

Antes disso, para não perder o fio, quero falar do ensaio de Adorno sobre Beckett, para o meu gosto um dos mais brilhantes que já se escreveram sobre a literatura moderna. Em Fim de partida as personagens são figuras metidas numa lata de lixo, mutiladas e falando uma linguagem limitada a quase nada, um resíduo. Isso costuma ser considerado uma redução ao essencial, um minimalismo atemporal, para mostrar que o ser humano, mesmo na situação mais precária, conserva inteira a sua grandeza. Mas Adorno desloca a cena, lhe põe uma data e diz que, muito ao contrário, o que Beckett está descrevendo é uma sociedade “pós-catástrofe”. Pós-catástrofe nuclear, pós-Segunda Guerra Mundial, enfim, a época em que a civilização moderna mostrou que a sua capacidade de autogoverno ou de auto-superação não é o que se dizia. Dentro desse universo, os farrapos de filosofia, os resíduos de iniciativa, de desejo de progresso, os cacoetes da esperança, representam na verdade lixo intelectual, água servida. Assim, a operação crítica consistiu em deslocar para um momento histórico preciso e bem explicado, embora imaginado, o que se costumava alegorizar como a condição humana. O deslocamento confere uma incrível vivacidade e particularidade artística ao que pareceriam alegorias e generalidades insossas. Do lado do referente também há deslocamento: a sociedade não é nacional, regional ou municipal, ela é o planeta depois do desastre. O ensaio de Adorno muda a leitura de Beckett e é um grande achado crítico. É um exemplo de como o referente social e histórico tem âmbitos inesperados e pode ser de diferentes tipos. Retomando a sua pergunta, no caso do Paulo Lins há de fato um universo circunscrito, por assim dizer policialmente segregado. Um universo fechado por circunstâncias “modernas”, desastrosas, altamente preocupantes, que permite escrever um romance “à antiga”. Mas o romance não é antigo de jeito nenhum.

 

O que despertou mais a sua atenção foi exatamente essa possibilidade?
Não. Foi, primeiro, a extrema vivacidade da linguagem popular, dentro da monotonia tenebrosa das barbaridades, que é um ritmo da maior verdade. Depois, a mistura muito moderna e esteticamente desconfortável dos registros: a montagem meio crua de sensacionalismo jornalístico, caderneta de campo do antropólogo, terminologia técnica dos marginais, grossura policial, efusão lírica, filme de ação da Metro etc. E sobretudo o ponto de vista narrativo, interno ao mundo dos bandidos, embora sem adesão, que arma um problema inédito. Há ainda o conhecimento pormenorizado, sistematizado e refletido de um universo de relações, próximo da investigação científica, algo que poucos romances brasileiros têm. Enfim, é um mix poderoso, representativo, que desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso. É um acontecimento.

 

Em paralelo ao desenvolvimento de uma crítica dialética, florescia uma outra crítica bem diferente no Brasil, comandada pelos concretistas, em especial pelos irmãos Campos, e entre as duas se estabeleceu uma intensa polêmica. Gostaria que você situasse um pouco essa questão.

A oposição existe, mas no que importa ela não é fácil de fixar, porque foi recoberta por um fla-flu, errado em relação às duas partes. Até onde entendo, as versões que ficaram foram determinadas pelos anos da ditadura. Numa delas, os críticos ligados à Teoria Literária da USP seriam múmias conteudistas, professores atrasados, cegos para as questões de forma, praticantes do sociologuês, nacionalistas estreitos, além de censores stalinistas. Ao passo que no campo concretista estariam os revolucionários da forma, atualizados com o estruturalismo francês, o formalismo russo e a ciência da linguagem, conscientes de que o âmbito literário não se comunica com a vida social. Naturalmente a versão do campo em frente trocava os sinais desses mesmos termos e opunha, para abreviar, engajados a alienados, um pouco em paralelo – como me indicou uma amiga – com as polarizações dos festivais da canção da época. Ora, nada disso corresponde. Os críticos dialéticos eram formalistas de carteirinha, empenhados justamente na reflexão sobre o problema. Seu ângulo era estético, as suas simpatias eram modernistas e sua posição era anti-stalinista de longa data. As linhas teóricas a que se contrapunham eram a historiografia positivista, o psicologismo, o marxismo vulgar e a classificação das obras segundo as convicções políticas de seus autores. Para dar ideia da independência conceitual e crítica com que então se trabalhava na USP (em certos setores), não custa acompanhar alguns passos de um percurso característico. Talvez se possa dizer que Antonio Candido foi buscar no close reading do New Criticism – uma técnica formalista, desenvolvida nos States, na década de 30, com sentido conservador – um instrumento para fazer frente ao sociologismo e ao marxismo vulgar correntes na esquerda brasileira dos anos 40. Só que ele reelaborou o procedimento e o abriu em direção da história, com vistas na historicização das estruturas, o que lhe permitiu uma sondagem de novo tipo da literatura e da sociedade brasileiras. Sem alarde de terminologia, e muito menos de griffes internacionais, os ensaios de Antonio Candido que vêm ao caso aqui são seguramente as peças mais originais de análise estrutural já feitas no Brasil. Também no campo dos concretistas a história não cabe no chavão. É falsa a ideia de que fossem “alienados” ou desinteressados do rumo da história extraliterária. Como vanguardistas, entendiam a sua revolução formal como parte de uma revolução social em curso. Eram de esquerda e Haroldo se considerava próximo do marxismo, não sei se também nos últimos tempos. Se a pecha de pouco sociais colou neles no pré-64 foi devido aos preconceitos antiexperimentalistas do Partido Comunista, que na época dispunha de autoridade e denunciava o “formalismo” da arte moderna. O que não impediu os concretistas de disputar com galhardia o seu lugar dentro da esquerda e de anunciar, num congresso de crítica literária em Assis, em 1961, o seu “salto participante”. Procuravam articular a invenção formal com a radicalização política do Brasil. Em suma, contrariamente ao lugar comum, os dialéticos eram formalistas, os concretistas eram engajados, e o que nos movia a todos era a aceleração histórica do país.

 

Os concretistas desenvolviam a linha de Oswald de Andrade?

É o que eles dizem, embora eu ache difícil reconhecer o ar de família. Ainda quanto aos chavões, é interessante notar que ao contrário do que eles afirmam, e os outros repetem, eles são de longe os escritores brasileiros que mais se valeram da sociologia para a sua autojustificação e para explicar a própria primazia. Entre nós, não há outros que dependam tanto da teoria social para garantir a posição a que aspiram para a sua obra. A teoria deles vale o que vale, mas a contradição merece registro. Voltando à polêmica, não é fácil encontrar grandes razões para ela. De um lado, críticos-professores tentando uma interpretação histórico-estrutural da literatura brasileira, puxando para a esquerda. Do outro, à esquerda também, o grupo dos poetas concretistas, que militavam para impor a sua obra, em que viam a revolução, além de teorizarem em causa própria, o que é natural igualmente, mas nem sempre convence. Para que a história fosse outra (e ninguém fosse chamado de “vermina pestilente” ou chefe de uma “campanha de caça aos concretistas”), talvez bastasse que os professores da USP não tivessem torcido o nariz para a “tese” dos poetas, segundo a qual a linha nobre da poesia moderna, que vem de Mallarmé, passa por Oswald de Andrade, Drummond e João Cabral, culmina neles próprios. Mas pode-se imaginar também que o antagonismo tenha fundamento em idéias diferentes no que respeita à evolução das formas. Do ponto de vista dialético, a modernização formal existe, não significa o que pretende, e deve ser analisada não só como solução, mas também como problema. Do ponto de vista dos poetas concretos, que a buscam numa espécie de iconização e aceleração da linguagem, ela é a linha reta e positiva que leva a um indiscutível plano superior. Para reflexão, não custa notar que o Movimento Concreto foi lançado na mesma época em que Adorno assinalava, como um marco, o envelhecimento da Música Nova, ou seja, o esvaziamento da tensão vanguardista.

 

Mas o concretismo também mudou.

A partir de 1964/68, quando a revolução saiu da ordem do dia no Brasil, uma parte dos escritores passou a considerar a linguagem como a sua única trincheira. Foi a época em que a crítica literária falava de subversão da sintaxe, das formas, dos gêneros, revolução textual etc. Haveria um estudo engraçado a escrever sobre essas substituições.

 

E isso com alguns apoios teóricos internacionais, não?

Claro, claro. Foi o auge do estruturalismo de base linguística, e logo do neo-estruturalismo, este especializado na dissolução das estruturas positivas. Ao passo que o estruturalismo buscado por alguns na Teoria Literária da USP era de base histórica e estava descobrindo a potência formal, no plano estético, da estrutura de classes do país. Pensando melhor, talvez houvesse mais antagonismo do que ficou dito até aqui.

 

E depois essa guerra repercutiu também em espaços de maior reverberação do discurso, como o da música popular brasileira, não é?

É um ponto que merece atenção. O livro de Caetano Veloso, Verdade tropical, é muito valioso e interessante nesse sentido. Caetano tem ideia clara do que estava em jogo e tem grande capacidade de sintetizar debates intelectuais. O livro está sempre polemizando com a esquerda, mas descreve o processo de maneira realista. A ideia de que naquilo tudo só se tratasse de linguagem não passa pela cabeça dele.

 

Passada a fase mais furiosa do embate entre críticos dialéticos e concretistas, aparentemente algumas linhas de trabalho de crítica literária no país buscam uma certa síntese entre proposições das duas tendências. Em certa medida Silviano Santiago não faz isso?

Não penso que síntese seja a palavra. Mas Silviano escreveu na década de 70 “O entre-lugar do discurso latino-americano”, um ensaio de grande habilidade estratégica, a primeira mobilização importante da obra de Derrida no quadro brasileiro. Ele usa a desconstrução para descrer das categorias da opressão e fazer dela um jogo de linguagem, que certamente ela também é. Mas ela não será mais do que isso? Seja como for, também aqui não se tratava só de linguagem, pois o ensaio, até onde vejo, deveu a repercussão aos poderes a que se opunha: à prepotência dos militares, ao autoritarismo na esquerda armada, às presunções do imperialismo americano, a nosso sentimento de inferioridade diante da primazia cultural dos grandes centros etc. Mais adiante Silviano afinou a desconstrução de Derrida com o jogo ou conflito entre os gêneros, fazendo dela um elemento de liberação sexual, em especial da homossexualidade. Que eu saiba, foi o primeiro crítico a fazer da liberação da homossexualidade um elemento importante de periodização da história do Brasil, ao fazer que ela convergisse com o tema da abertura política e da redemocratização, de que seria uma pedra de toque. Na minha opinião é um grande lance, embora a construção me pareça conformista por outro lado.

 

Como você descreveria o panorama atual da crítica literária no Brasil? Quais são seus pontos de força teóricos?

As linhas teóricas internacionais estão representadas e funcionando, há pós-graduações numerosas, com bolsas de estudo, e, não obstante, há um certo esgotamento. Com perdão da mania, o que falta é espírito dialético. Como os momentos notáveis da cultura brasileira estão consagrados, não lembramos até que ponto dependeram do contato com o avesso da sociedade. Essa é uma verdade insuficientemente considerada. A reflexão hoje tem que se redimensionar através do mundo que está se formando à revelia do discurso oficial sobre a modernização e o progresso. Basta subir ao Alto de Santana e olhar São Paulo para saber que o que está acontecendo está fora de controle e tem pouco a ver com as grande linhas incorporadas em nossa organização mental. Nesse sentido, os cultural studies, com a sua falta de hierarquia, não deixam de ser uma resposta, embora – até onde sei – pouco crítica do capitalismo e pouco interessada em questões de estética, o que diminui muito o seu alcance. Um trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de Iumna Simon, que saiu na revista Praga n° 7, sobre a poesia de Valdo Motta. Ele é um poeta negro do Espírito Santo, homossexual militante, muito pobre e dado a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus do poeta como centro do universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura bíblica, disposição herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem nada de exótico. Bem, a Iumna leu o poeta por acaso, numa revista, percebeu a força e a importância do que estava ocorrendo, procurou saber mais, e acabou organizando um volume de poemas para a editora da Unicamp, juntamente com Berta Waldman (Valdo Motta, Bundo e outros poemas, 1996). Para fazer justiça ao poeta, que é perfeitamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretudo, compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim – sem desmerecer outras linhas possíveis – que a crítica depende para recobrar vitalidade e estar à altura da realidade.

 

Vou voltar a um ponto anterior: por que o New Criticism, como empreendimento nos Estados Unidos, era conservador?

O New Criticism nasceu com uma teoria de professores de Letras do sul dos Estados Unidos, o Old South anti-ianque. Eles viam o poema como um campo de complexidade singular, onde a linguagem não tem finalidade utilitária e não é abstrata, o que, de certo modo, simboliza uma oposição ao capital, ao mundo do Norte. Para consubstanciar essa posição, desenvolveram uma técnica de análise centrada em ambiguidade, tensão e ironia, atributos estranhos à funcionalidade moderna. Há uma carta de Allan Tate, uma das grandes figuras do movimento, em que ele diz que acabava de ler o artigo de um alemão que descrevia a obra de arte como eles, embora infelizmente fosse marxista. O alemão era Adorno, que era refugiado de guerra nos Estados Unidos. A anedota é interessante porque mostra que o anticapitalismo de Adorno, com horizonte socialista, até certo ponto convergia com o anticapitalismo de um sulista católico e tradicionalista – na posição contrária à instrumentalização da linguagem. A análise cerrada que o New Criticism praticava representou de fato um patamar novo em matéria de compreensão da complexidade interna da poesia. A técnica podia ser usada, é claro, de muitas maneiras. Anatol Rosenfeld, por exemplo, dizia explicitamente que praticava o close reading, mas informado por sua cultura filosófica, que não tinha nada que ver com a dos new critics americanos. Eles talvez fossem provincianos, mas desenvolveram uma coisa genial.

 

O New Criticism foi bem assimilado no Brasil?

É um bom tópico de pesquisa. Nos anos 50 houve militância, em especial de Afrânio Coutinho, hoje difícil de ler. Como sempre, aproveitaram bem os que tinham projeto próprio e souberam guardar distância, como Sérgio Buarque e Antonio Candido.

 

Não lhe parece que o mundo contemporâneo, midiatizado, espetacularizado, oferece um ambiente pouco adequado à literatura como um exercício insistente e forte? O fenômeno é só brasileiro?

Certamente não. Mas de alguma maneira os intelectuais brasileiros estão cavando pouco o seu próprio terreno. Conhecemos pouco as coisas das quais dependemos nesse momento. Se você pensar no conhecimento que tinham da sua matéria Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Machado de Assis, vai ver que a escrita deles estava associada a um processo tenaz de aquisição de conhecimento, de verificação social e moral, de experimentação. No fim de contas, uma das coisas que mais distingue o livro de Paulo Lins é que, como ele foi assistente de pesquisa de uma antropóloga, tem o conhecimento exaustivo e articulado do universo dele. Isso dá ao livro uma potência própria, que falta aos colegas. O sumiço da exigência intelectual não precisava ter ocorrido, foi uma falta de pique. Também na poesia aconteceu uma coisa assim, ela abriu mão de falar do mundo contemporâneo de maneira sustentada. No Brasil, por uma razão que não sei, de repente começou a surgir uma poesia curtinha, pouco reflexiva, pouco ousada. Digo isso sabendo que não é tudo, pois a poesia mais minimalista dos últimos tempos é também – na minha opinião – a mais reflexiva e complexa – estou pensando no Elefante, de Francisco Alvim.

 

Quando você diz que não sabe, é ironia, ou não sabe mesmo?

Eu diria que o predomínio do concretismo, que atravessou a segunda metade do século passado, tornou a poesia impermeável ao pensamento, com muito prejuízo para ela. A culpa não é dos concretistas, acho natural que todo grupo poético procure se promover e valorizar. O que aconteceu de incrível foi que o mundo intelectual brasileiro pouco ou nada opôs àquele padrão. Marx diz a certa altura que o segredo da vitória de Luis Napoleão não está na força dele, mas na fraqueza da sociedade francesa do tempo. Analogamente, acho mesmo o caso de perguntar pelo que aconteceu à vida cultural brasileira do último meio século para que algo tão limitado como a poesia concreta pudesse alcançar tanta eminência. É uma questão mais profunda do que pode parecer. Tem a ver com a credulidade subdesenvolvida diante do progresso.

 

Queria que você contasse o caso curioso de Bertha Dunkel, que pouca gente conhece.

Foi o seguinte: mais ou menos em 1966 me encomendaram uma explicação didática da ideia marxista de mais-valia, para ser usada em aulas para um grupo operário, clandestino na época. Escrevi com a maior clareza de que era capaz. Como não saiu ruim, houve interesse em divulgar o folheto em âmbito maior, e o grupo da Teoria e Prática resolveu publicá-lo na revista. Inventei uma personagem para assinar o “artigo”, que era essa Bertha Dunkel. Bertha para Roberto, e Dunkel, que quer dizer escuro, para Schwarz, que é preto. Escrevi uma pequena biografia como introdução, explicando que ela era uma escritora alemã de vanguarda, que nos anos 20, tocada pela proximidade da revolução, resolvera se dedicar ao didatismo político, no qual via uma forma literária e um problema estético. É claro que eram questões que estavam interessando a mim. A coisa teve um desdobramento engraçado porque um intelectual de renome, que conhecia tudo do movimento operário alemão, tinha lembrança de Bertha.

 

 

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