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“Só, como Franz Kafka” – António Guerreiro

Texto de António Guerreiro extraído do jornal Público:

A edição dos Diários de Kafka, pela Relógio D’Água, traduzidos com enorme competência por Isabel Castro Silva, é um acontecimento editorial recente, que tem de ser salientado.

É certo que já em 1986 a Quetzal tinha publicado os Diários do escritor checo (numa tradução de Maria Adélia Silva Melo), mas essa edição não era integral. Devemos ter em conta que os Diários completos, mesmo na edição alemã, só surgiram no plano da edição da Obra Completa de Kafka, iniciada em 1982. Até aí, o que se conhecia dos Diários era o que Max Brod tinha editado, com muitos cortes e omissões. Como é sabido, Brod foi o executor testamentário de Kafka, no que diz respeito ao seu espólio literário, e, embora lhe seja reconhecido um grande mérito (antes de mais, o de não ter cedido ao  pedido que lhe fez o seu amigo, nas vésperas de morrer: que queimasse quase tudo o que estava inédito, e que era a maior parte do que hoje conhecemos como a sua obra), não deixou de se comportar muitas vezes como se Kafka fosse a sua propriedade privada.

Esta escrita diarística que Kafka alimentou desde 1909 a 1923 (ou seja, o ano anterior à sua morte) tem a característica de nem sempre se distinguir do resto da sua obra, e não apenas por uma grande parte dos fragmentos não ser datada. Neles, encontramos partes que entram directamente nos seus romances, contos e parábolas, mas também, evidentemente, muitas anotações da sua vida trivial, em Praga: a relação difícil com os pais (sobretudo, com o pai), o obstáculo que o seu emprego, numa companhia de seguros, colocava à tarefa da escrita, a relação com o judaísmo, as suas hesitações e inabilidades nas relações amorosas, etc. Leia-se, por curiosidade, o que escreveu a 20 de Agosto, uma semana depois de ter conhecido Felice Bauer, de quem haveria de fugir quando o contrato de casamento, em 1917, lhe pesou como uma ameaça: “Fräulein Felice Bauer. Quando cheguei a casa dos Brod, no dia 13.VIII, ela estava sentada à mesa e, no entanto, pareceu-me ser uma criada. Também não senti qualquer curiosidade em saber quem era, em vez disso, resignei-me de imediato à sua presença. Rosto vazio, de ossos salientes, que exibe abertamente o seu vazio. O pescoço à mostra. Blusa amarrotada. Parecia vestir roupa de trazer por casa, ainda que, como mais tarde percebi, não fosse esse o caso”.

Há um momento, em Outubro ou no princípio de Novembro de 19913, em que profere a pergunta que se tonará a questão kafkiana por excelência, aquela a que um exército de exegetas e biógrafos (a começar por Max Brod) irá tentar responder: “’Quem sou eu, afinal?’, gritei a mim mesmo”. Sabemos muito bem que esta pergunta teve muitas respostas completamente diferentes, de tal modo que nunca faltou Kafka para todos os gostos e ele acabaria por ser nome de legião: o santo, o culpado, o funcionário renitente, o escritor que viu na sua obra uma ameaça tão grande que pediu para ela ser queimada, o homem que tinha “um mundo tremendo na sua cabeça”, tão tremendo que houve quem dissesse que o pior do século XX foi “kafkiano” (um atributo que entrou na linguagem corrente), mas que no dia 2 de Agosto de 1914, quando deflagrou a Primeira Guerra Mundial, se limitou a registar, laconicamente: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. – À tarde, natação”. A essa pergunta, “Quem sou eu, afinal”, que viria a mobilizar tanta gente, não respondem os diários com muito mais segurança do que o resto da sua obra.

O mistério chamado Kafka está coberto pela película espessa de uma vida banal. Walter Benjamin disse que o escritor checo tudo fez para tornar inacessível a resposta a essa questão e «ter-se-ia confrontado toda a vida com o quebra-cabeças que consistia em saber com o que é que se parecia, sem nunca ter percebido que existem espelhos». Benjamin escreveu isto antes de Max Brod ter contado que este gostava de sublinhar a sua aparência juvenil (as fotografias que dele conhecemos comprovam), tendo chegado a afirmar: “Nunca viverei a idade adulta, passarei subitamente de criança a um velho de cabelos brancos”. Elias Canetti , por sua vez, disse que “Kafka teve a habilidade de se transformar no homem mais insignificante”. A narrativa da sua vida é de facto trivial, passa-se quase toda (ou seja, os 41 anos que vão de 1883 a 1924) no centro histórico de Praga, onde nasceu, estudou Direito e trabalhou durante 14 anos (de 1908 a 1922), numa companhia de seguros. Exceptuando o Inverno de 1923/24, em que viveu com a sua última namorada em Berlim, Dora Diamant, nunca passou mais do que alguns dias no estrangeiro nem vivido com uma mulher; permaneceu solteiro toda a vida, apesar de ter estado noivo por três vezes (duas delas, com Felice Bauer), e só aos 31 anos saiu de casa dos pais. Conheceu apenas as cidades de Berlim, Munique, Paris, Viena, Zurique e Budapeste, mais a região do Norte da Itália. O mar, só o viu três vezes.

Eis então a situação paradoxal de um escritor singularmente pobre em biografia, que continua a lançar um enorme desafio no plano biográfico. Este foi o ponto de partida de Reiner Stach, autor de uma monumental biografia de Kafka em três volumes (o primeiro, referente aos “anos decisivos” de 1910 a 1915 — Kafka. Die Jahre der Entscheidungen; o segundo, de 1916 até ao fim da vida — Kafka. Die Jahre der Erkenntnis, o terceiro, sobre os primeiros tempos – Kafka. Die frühen Jahre, publicados respectivamente em 2002, 2008 e 2014). Reiner Stach segue uma via que abre uma «dimensão vertical», seguro de que a riqueza da existência de Kafka se desenvolve essencialmente num plano psíquico, invisível, e nada tem a ver com o plano horizontal dos acontecimentos e a paisagem social. O escritor que provocou grandes considerações de ordem moral e política, o escritor que provocou a intempestiva pergunta: “Faut-il brûler Kafka?” (numa revista literária francesa, em 1946), o escritor que foi objecto de um longo e elaboradíssimo “processo” — Kafka, Pró e Contra (de Günther Anders, primeiro marido de Hannah Arendt, em1951) que o relacionava com a lógica fascista do século XX, forneceu indicações suficientes para que os seus biógrafos não seguissem os caminhos tradicionais: quando falou do «mundo tremendo», que tinha na sua cabeça; ou quando escreveu a Felice: «O romance sou eu, as minhas histórias sou eu»; ou quando registou no seu diário: «Eu não sou senão literatura, e não posso nem quero ser outra coisa». Reiner Stach encontra aqui razões suficientes para ver Kafka como uma personagem literária. E para quebrar radicalmente com o mito Kafka.

O mito Kafka nasceu muito cedo, pela pena de Max Brod, que publicou em1937 uma biografia de Kafka cuja tese fundamental era a de que a obra e a vida daquele que lhe tinha confiado a responsabilidade de executor testamentário se encontravam no caminho da santidade. O Kafka de Brod é o santo, a boa alma, o profeta, o inatingível, o puro. E, por último — peça essencial da mitificação —, aquele que à beira da morte lhe pede que queime todos os escritos que ficaram inacabados e também — ou sobretudo — os diários e as cartas. O mito Kafka comportava assim a dimensão heróica e abnegada de quem quer poupar a posteridade a uma herança carregada de profecias sinistras. Walter Benjamin, que no momento da publicação dessa biografia a criticou duramente, foi ao ponto de dizer que Kafka tinha confiado a tarefa de destruir os seus escritos a quem ele sabia que jamais cumpriria a sua última vontade. Reiner Stach trata, também ele, de desfazer este mito do espólio literário destinado a ser queimado, mostrando que Kafka poderia ter cumprido essa tarefa e não o fez. E limita essa última vontade de Kafka às cartas e aos diários.

Max Brod fixou durante muito tempo a imagem de Kafka transmitida à posteridade. Mas não evitou que outras imagens fossem surgindo: anarquista, teólogo, cabalista, metafísico, ironista – muitos têm reivindicado o «seu» Kafka e, coisa espantosa, sempre houve Kafka para todos. E havia a imagem da solidão, que Reiner Stach reforça ao mostrar que há sempre uma não-sincronia em relação aos que foram amigos e contemporâneos. Essa solidão essencial foi formulada numa daquelas frases, típicas de Kafka, que parecem ao mesmo tempo dotadas de uma enorme leveza e de toda a gravidade do mundo. Foi quando o amigo Janouch lhe perguntou se ele se sentia só como Kasper Hauser e ele respondeu:«Muito pior do que Kasper Hauser, sinto-me só como Franz Kafka». Para todos os amigos, foi sempre um ser misterioso. Lemos numa carta a Felice: «Sou incompreensível para Max, e naquilo que ele me acha compreensível, engana-se».

Um dos episódios mais atribulados da sua vida  foi a relação com Felice, uma empregada berlinense a quem prometeu duas vezes o casamento, e das duas vezes fugiu à promessa. De uma das vezes, teve que passar pela cerimónia do noivado em casa dos pais dela. Do horror que foi para ele essa cerimónia, dá conta numa página do diário. Mal também se sentiu Felice quando soube que os pais dele tinham mandado detectives investigar a família dela. E pior ainda se sentiu ele quando foi chamado a Berlim, ao Hotel Askanische Hof, a 12 de Julho de1914, onde foi submetido ao «tribunal» por causa da pouco inocente relação epistolar que mantinha com Grete Bloch, amiga de Felice. Com alguma ambiguidade, Grete tinha alimentado a correspondência, mas agora estava ali, no hall do hotel, com Felice e a irmã desta, Erna, para o julgar, enquanto ele permaneceu sempre em silêncio.

A relação com Felice foi reatada em Maio de 1916, em Marienbad, onde esteve por uns dias em trabalho. Foi aí que deve ter ultrapassado algumas barreiras com que se tinha protegido de qualquer relação física. Escreveu então a Max Brod: “Mas agora vi o olhar de confiança de uma mulher e não me pude fechar”. Dois anos antes, os dois já tinham estado num hotel numa pequena cidade de fronteira da Áustria com a Alemanha, mas o que Kafka fez foi ler-lhe, do manuscrito de O Processo, o episódio intitulado Perante a Lei. Em Agosto de 1917 sofreu uma hemorragia, na sequência da qual é-lhe diagnosticada uma tuberculose pulmonar. Estava então a viver em casa da irmã preferida, Ottla, na Rua dos Alquimistas. Nesse momento inicial, diz-nos Stach, ele chega a encarar a doença como um «alívio», pois ela liberta-o da obrigação do casamento com Felice. Em 1919, há a relação com Julie Wohryzek, de Praga, de quem também esteve noivo, mas o pai também tratou de envenenar a relação. A célebre Carta ao Pai teria nascido daí.

Vem depois a relação com Milena, em 1920, e, já no último ano de vida, a relação com a judia de Leste Dora Diamant, com a qual viveu em Berlim durante seis meses, em condições muito precárias, por causa da saúde e de dificuldades financeiras. Nos seus últimos dias, no sanatório de Kierling, na Áustria, Kafka esteve sempre acompanhado por Dora (que terá sido o único amor feliz da sua vida) e por um dos seus amigos, o médico Robert Klopstock, a quem solicitou a morfina que pôs termo ao sofrimento que se tinha tornado insuportável. Terminava assim uma existência marcada por um grandioso falhanço em todos os combates a que se viu obrigado: com o pai (cuja autoridade o assustava tanto que nem sequer era capaz de permanecer em pé diante dele), com a literatura (não acabou nenhum dos seus romances), com o mundo das mulheres.

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O arquivo de Eduardo Lourenço

Publicado no jornal Público, de Lisboa [via Blogtailors]:

Ninguém sabe ainda ao certo quantos documentos integram o arquivo de Eduardo Lourenço adquirido pela Biblioteca Nacional (BN) em Janeiro passado por cem mil euros, mas enchem “102 caixas e 431 dossiers”, precisou ao PÚBLICO a presidente da BN, Inês Cordeiro.

 A informação, divulgada em vários jornais, de que o acervo se comporia de cerca de 11 mil documentos está errada, sendo provável que o equívoco se tenha ficado a dever a uma confusão entre a totalidade dos documentos e a parcela que diz respeito à correspondência do autor.

As cartas conservadas por Lourenço é que já foram inventariadas e ultrapassarão as 11 mil, constituindo um valioso testemunho dos diálogos que o autor de Pessoa Revisitado (1973), O Labirinto da Saudade (1978) ou O Canto do Signo (1994) foi mantendo ao longo de décadas com escritores portugueses de várias gerações, e também com autores estrangeiros.

“No total, poderão ser cem mil ou 120 mil documentos”, arrisca João Nuno Alçada, grande responsável pela vinda para Portugal deste impressionante acervo que Eduardo Lourenço foi acumulando ao longo de décadas na sua casa de Vence, em França. Foi também Alçada que deu início à organização e catalogação do arquivo, um trabalho que começou a ser feito há já alguns anos, com o apoio da Gulbenkian, do Centro Nacional de Cultura e da Fundação EDP, nos vários lugares que foram provisoriamente acolhendo estes papéis: a própria Gulbenkian, a Torre do Tombo e, finalmente, a Biblioteca Nacional.

A directora da BN não tem dúvidas de que este é um dos mais extensos núcleos documentais a integrar o Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, e observa ainda que a sua “integralidade”, a “garantia de que está ali praticamente tudo”, lhe confere um valor muito particular.

E basta pensar nas Obras Completas de Eduardo Lourenço em curso de publicação pela Gulbenkian – com coordenação científica de João Tiago Pedroso de Lima e Carlos Mendes de Sousa – para se perceber a vantagem que representa para os responsáveis do projecto o acesso ao arquivo integral. A julgar pelos volumes já divulgados, a lógica tem sido a de agregar a cada título originalmente publicado por Lourenço um extenso conjunto de outros textos seus que partilham o mesmo universo temático, um critério que deveria implicar percorrer todo o acervo para garantir que não fica de fora nenhum ensaio ou artigo relevante.

Ainda que esse propósito de exaustividade esteja sempre potencialmente ameaçado pela própria vitalidade intelectual de Lourenço, que aos 91 anos mantém a sua proverbial dificuldade em recusar solicitações para colóquios e afins e continua a escrever ou improvisar oralmente sobre os mais diversos temas e autores.

Mas nem tudo o que está no acervo poderá ser publicado de imediato. Neste momento, o acesso à documentação está aliás limitado à equipa que trabalha na sua inventariação e organização e aos investigadores envolvidos quer no projecto das obras completas em curso de publicação pela Gulbenkian, quer na preparação dos novos títulos de Lourenço que vêm sendo editados pela Gradiva, onde saiu já este ano Do Brasil: Fascínio e Miragem, um livro que compreende textos dispersos e inéditos de diversa natureza e redigidos ao longo de quase 70 anos, entre 1945 e 2012.

No total, e segundo a directora da BN, há apenas 27 pessoas autorizadas por Eduardo Lourenço a consultar esta documentação. Uma restrição habitual em acervos deste tipo, e que é fácil de compreender se pensarmos que a BN conserva agora milhares de cartas que Lourenço trocou com autores como Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, José Cardoso Pires ou António Lobo Antunes, para citar apenas um pequeno número dos seus correspondentes, que inclui ainda muitos dos mais importantes investigadores estrangeiros da obra de Pessoa.

Tendo em conta as características do meio literário português, que não serão muito diferentes das de qualquer outro, e o presumível grau de intimidade que Lourenço manteria com alguns destes seus correspondentes, não é difícil imaginar-se a trapalhada que adviria da divulgação imediata e irrestrita de todas estas cartas. Numa entrevista publicada esta semana no Jornal de Letras, João Nuno Alçada conta que Eduardo Lourenço permitiu, por exemplo, o estudo e posterior publicação da correspondência com Casais Monteiro ou José-Augusto França, mas interditou a consulta do seu diálogo epistolar com Vergílio Ferreira e foi avisando que há alguns textos que “nem daqui a 30 anos” poderão ser publicados.

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“Seguindo o rasto de Houellebecq, um escritor genial de pena envenenada” – Jan Le Bris de Kerne

Extraído do jornal Público de Lisboa:

É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia. Eis o mais recente: Submissão, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos.

Todos conhecemos pessoas doces, indolentes, transparentes ou que se fazem de simpáticas que, com o uso e o tempo, se revelam, sob o verniz, heróis, tiranos, loucos, sectários ou génios. Sofremos então um choque: como nos tínhamos enganado em relação à pessoa que temos agora à nossa frente e que está já a anos-luz daquela que olhávamos ainda há instantes.

Michel Houellebecq é um choque permanente. Não é possível ignorá-lo. É o grande homem dos franceses e da sua literatura, comparado a Balzac, Zola ou Flaubert. É um choque a sua omnipresença há 15 anos — a densidade do seu pensamento, a força do seu estilo. Um choque, também, a polémica que desencadeia de cada vez que aparece, obrigando-nos a questionar-nos.

E eis o mais recente choque: Soumission, que fala da França, do islão, de política, de vencedores e vencidos, e que se dirige a uma França já esgotada por 20 anos de debates e de incompreensões sobre o islão, a política, os vencedores e os vencidos. O livro será editado em Portugal neste primeiro semestre pela Alfaguara, com o título Submissão.

Antes de Submissão, havia Houellebecq. Um físico estranho. Uma voz átona e hesitante. Um olhar de uma intensidade desconcertante, gestos suaves e desajeitados. E um passado atípico para quem pretende ter assento entre os grandes da literatura contemporânea.

Os seus primeiros anos são à imagem das personagens que privilegia: incertos, difusos, parecendo deslizar entre os obstáculos da vida. Tem uma data de nascimento oficial (1958) e uma falsa (1956). Foi a mãe que, pressentindo-lhe o génio, o envelheceu dois anos para o inscrever na escola, ou foi ele que, para rejuvenescer, a falsificou? Há controvérsia, logo mistério. Deverá o seu nome ao acaso de um passeio ao Monte Saint-Michel. A família parece disfuncional, não muito atenta a ele. A mãe publicará, de resto, um livro disparatado onde responde violentamente ao filho (que se inspirou nela para diversas personagens femininas).

Quantas estradas secundárias terá de percorrer antes de nascer verdadeiramente para o que será a sua vida: a escrita? A sua superioridade intelectual leva-o a ingressar num curso de preparação para as Grandes Écoles d’Ingénieur, onde se selecciona, explora, tria e forma a nata da nata da elite francesa. Entra numa célebre escola de Agronomia — tão longe do escritor. Afasta-se ainda um pouco mais ao trabalhar em informática, durante 13 anos, para diversas empresas e instituições. Ao longo desse tempo, armazena, sem dúvida, uma matéria em bruto inestimável aonde vai buscar mais tarde a sua panóplia de personagens incrivelmente reais, esculpidas no barro da fabulosa mediocridade do francês médio. E, sobretudo, vive, sobrevive, ganha a vida.

Claro que publicou, de vez em quando, revistas e poemas. Gosta de ler, ama as mulheres, fuma e adora beber. As grandes bebedeiras de então ainda não o marcaram. Os seus grandes olhos azuis ora espantados, ora fugidios, que de repente se fixam intensamente, iluminam um rosto juvenil com uns lábios finos de fino observador, emoldurado por cabelos que já vão rareando, bem penteados e de uma cor indecisa.

Não há boa literatura com bons sentimentos
É raro que se faça boa literatura com bons sentimentos. Tragédias, policiais, poesia, ensaio ou romance: todos os géneros carregam a sua massa de sofrimento, mal-estar, dramas a exorcizar. E Houellebecq é um mestre na arte de fazer zoom sobre o quotidiano de personagens perdidas e algo desinteressantes para, logo de seguida e num movimento inverso, oferecer um panorama particular do mundo e uma relação entre factos aparentemente insignificantes.

Em 1994 publica Extensão do Domínio da Luta. O romance é marcante, mas não ultrapassa suficientemente a norma nas suas tomadas de posição para o transformar numa estrela. Nele descobrimos, no entanto, os alicerces das obsessões que marcarão os romances seguintes, bem como o estilo único que contribuirá para tornar a sua escrita tão singular. Narra a existência obscura de um solteirão neurasténico. De uma banalidade atroz, a personagem não deixa de ter parecenças com Houellebecq: informático, fortemente obcecado pelo sexo, mergulhado numa vida solitária enquanto, à sua volta, se agita uma sociedade de consumo obscena que engendra um combate financeiro e sexual implacável entre classes e indivíduos.

O virtuosismo de Houellebecq é notável, nomeadamente nas suas litanias descritivas de factos insignificantes, do ordinário mais sórdido ou de coisas aparentemente enfadonhas. Instruções de electrodomésticos, sociologia de uma empresa, descrição pelo rótulo de um prato ultracongelado, funcionamento do Minitel, relatório detalhado dos ruídos produzidos por uma velha caldeira. Irá mesmo descrever com extremo pormenor uma espécie de mosca em O Mapa e o Território, e aproveitará para agradecer à Wikipédia por tê-lo ajudado nas suas diligências! Houellebecq sabe tornar fascinante um aspirador.

Mas é em 1998, com As Partículas Elementares, que as portas da fortaleza dos media e da celebridade tóxica vão estilhaçar-se. Entra no circo, ele, o imodesto, tão absolutamente seguro da sua superioridade. Bebe com volúpia o cálice da agitação e das primeiras controvérsias. E o falso tímido explode nos ecrãs.

As Partículas Elementares é uma narrativa prolífica e multiforme. Trata-se de um simples romance? De um ensaio? De um estudo biológico ou sociológico? De um manifesto político? Digamos que é uma narrativa quase clínica, isto é, sem projecção emocional do autor nos factos que relata da vida de dois meios-irmãos, um dos quais, Michel, possui muitos pontos em comum com Houellebecq. No livro desenvolvem-se de novo as suas obsessões breteastonellisianas: o sexo, necessariamente orgiástico, obsessivo, cru, um pouco perverso, no limiar da pedofilia; a mulher, necessariamente objecto, consolidado com o plástico da cirurgia, atraída pelo dinheiro dos machos e também pelo seu sexo, claro. O diálogo impossível entre as pulsões permanentes do macho e as aspirações da fêmea, causa de frustração sexual, inibições e inaptidões sociais.

Para além destes temas, o romancista desfia outras linhas narrativas: a doença, o suicídio, o divórcio, o abandono, a crise dos 40, a clonagem, para concluir com um epílogo que gela: a personagem de Michel, geneticista, vê o seu trabalho resultar, após a sua morte, em 2029, na criação de uma raça de sobre-humanos desumanizados, liberta das angústias com que se debatiam as personagens do livro. Os homens desaparecem da terra, dando lugar a super-homens estéreis e eternos, podendo assim consagrar-se, sem consequências, ao perpétuo prazer sexual.

Não há fenómenos sem polémicas e sem estilo
Em 1998, torna-se, portanto, um fenómeno. Ora, poderá alguém reivindicar o título de “fenómeno” sem polémicas? Em França, certamente que não. Escandalosamente pornográfico, lamentavelmente misógino, forçosamente reaccionário: está sob fogo, mas o falso simpático, o doce, o indolente distende-se como uma mola e transforma-se em demónio para escapar aos detractores. É astuto, é jogador. Borrifa-se nas críticas, multiplicando as teorias futuristas (modificar a espécie humana, recriar o matriarcado, readquirir sentido através da religião), desmultiplicando as suas obediências: um dia, diz-se comunista; no dia seguinte, amigo dos católicos tradicionalistas anti-aborto, apologista da sociedade do consumo ou, pelo contrário, em busca do misticismo laico.

O mundo da edição dava-o como grande vencedor do Prémio Goncourt, mas nada. A decepção será tão amarga quanto o homem é orgulhoso e ciente do seu valor.

Em 2000, tendo enriquecido, expatria-se na Irlanda, terra apaziguante para todos os tipos de problemas de dinheiro. Ei-lo exilado fiscal, o grande escritor que, não satisfeito em pôr a França a ferro e fogo com a sua mania de a questionar e de a voltar a ensinar a ler, desertou, o traidor, para aí esconder a sua fortuna. Nova tempestade, novo assalto da cavalaria político-mediática. Desta vez, tentará aliviar as tensões, regressando ao país em 2012.

Mas voltemos atrás: ficámos no duche frio que se abate sobre Houellebecq quando falha o Goncourt em 1998. Seis anos depois, ei-lo de novo. A Possibilidade de uma Ilha é publicado em 2005. Os temas caros são novamente convocados, de forma espantosa. Enquanto seguimos a vida de Daniel1, comediante de sucesso no século XX, o romance intercala a história das vidas de Daniel2 e Daniel3 até Daniel25, clones que vivem vários séculos depois do primeiro Daniel. Este comediante cínico, mestre dos mecanismos do humor e do sucesso mediático, não deixa de lembrar um Dieudonné, controversa vedeta do humorismo que conjuga perigosamente a provocação anti-semita, o conflito israelo-palestiniano e a história colonial e africana de França.

Como sempre em Houellebecq, o desastre sentimental é um tema maior, bem como a inexorável queda na depressão dos seus heróis. Não se esquece o sexo, o incesto, o desejo pedófilo, as seitas e a espécie humana melhorada pela manipulação genética e pela clonagem. A Possibilidade de uma Ilha é o desejo de outro lugar, mal endémico da nossa sociedade contemporânea. Um outro lugar que Daniel1 não alcançará ou, pelo menos, não em vida, uma vez que se suicida no fim, dando assim vida aos seus clones, que herdam o relato escrito da vida de Daniel1 e a completam, um após outro, para ir melhorando a linhagem. O livro é um calhamaço: 500 páginas. Que deixa o leitor perturbado, tão denso e ambicioso é o seu objectivo. Este trabalho notável merecerá o Prémio Interallié. Gaita, ainda não é o Goncourt.

Como é que consegue manter os seus numerosos leitores fascinados de fio a pavio pela sua obra magistral? Porque o seu público vai bem além dos círculos intelectuais rodados no exercício da leitura de obras imponentes. O escritor é fracturante e exigente, mas popular. É lido por todo o lado. E se é lido por todo o lado e por toda a gente, e com uma tal avidez, é porque tem estilo.

Jean Birnbaum, jornalista no Le Monde e editor do suplemento literário do diário francês, admite ao Ípsilon: “É alguém que existe de forma muito forte, tem muito talento. Tem a capacidade de identificar aquilo que a sociedade precisa que lhe digam de mais abjecto, o discurso que a sociedade precisa que lhe façam.”

O homem e o estilo são reconhecíveis por todos e, além disso, assemelham-se. Clínicos, fluidos, neutros. Economia de palavras. Ausência de efeitos. Linguagem clara. Prosódia sem floreios. Claro que tem um prazer indissimulado quando se lança em explicações técnicas exageradas, em cursos de física especializados que até um engenheiro-cromo teria dificuldade em seguir. Evidentemente, rejubila quando, inesperadamente, se torna crítico literário e disseca um autor célebre com a desenvoltura erudita do especialista. Mas consegue dar uma espantosa unidade aos seus livros com gavetas que não param de se abrir. E cada vez se quer mais simples. No programa Boomerang da France Inter, diz, a 7 de Janeiro de 2015: “Não quero de maneira nenhuma que se veja como as coisas são escritas. Isso torna-se obsessivo. Tento minimizar os efeitos, enfim, não fazer efeitos, ser muito fluido, muito fácil de ler.”

O génio do escritor está também em ter sabido escolher temas que parecem improváveis, nocivos, fracturantes, com a ideia de federar, de ser acessível ou consensual. Fez, portanto, sucessos comerciais e críticos falhados.

O fenómeno é também o homem
É imodesto ao ponto da vaidade. É incontável o número de declarações em que se admira a si mesmo e elogia o seu talento. Representa, aliás, o seu próprio papel em 2014, no improvável telefilme L’enlèvement de Michel Houellebecq. É um fracasso, o que não o impede de declarar: “Continua a surpreender-me muito que me considerem um actor. Embora o resultado não seja mau.” Tanto que reproduz a experiência com a estreia, no mesmo ano, do improvável Near Death Experience, no qual é… o único actor. Narcisismo.

Houellebecq é também um físico que se parece com uma personagem de pesadelo saída de uma tela de Hieronymus Bosch, com uma criatura de BD americana, com o assassino em série e o imperador Palpatine da Guerra das Estrelas. Felizmente, possui uma qualidade maior: o humor e a autocrítica. Deixemo-lo falar de si próprio. Eis um extracto de O Mapa e o Território, onde coloca em cena uma miríade de personagens reais do mundo das artes, incluindo — e sobretudo — ele mesmo:

“Reconhecerá facilmente a casa, é o relvado mais desleixado das redondezas”, dissera-lhe Houellebecq. ‘E talvez de toda a Irlanda’, acrescentara.”

“Bateu pelo menos dois minutos à porta, sob chuva forte, antes de Houellebecq abrir. O autor d’As Partículas Elementares envergava um pijama com riscas cinzentas que o fazia parecer-se vagamente com um presidiário de uma telenovela; o cabelo estava despenteado e sujo, o rosto vermelho, quase afogueado, e cheirava um pouco mal. A incapacidade de fazer a higiene pessoal é um dos sinais mais seguros de um estado depressivo, recorda Jed.”

“Com efeito, restos de tostas e de fatias de mortadela juncavam os lençóis, manchados de vinho e queimados, aqui e ali, por cigarros.? “Voltei a recair… Voltei a recair completamente ao nível da charcutaria”, prossegue Houellebecq sombriamente. Realmente, a mesa estava repleta de embalagens de chouriço, de mortadela, de salame. Estende a Jed um saca-rolhas e, logo que a garrafa é aberta, engole um primeiro copo de um só trago, sem cheirar o bouquet do vinho, sem sequer se entregar a um simulacro de degustação. Jed tira uma dúzia de grandes planos, tentando variar os ângulos.”

Houellebecq, o homem, até então incompleto, acede à completude. Entra para o panteão, conquistando o seu graal, o seu Goncourt, em 2010, com O Mapa e o Território. O seu quinto romance. O Goncourt é atribuído no muito chique e mítico Restaurante Drouant, em Paris. Nesse dia, a agitação em torno do frágil Houellebecq é considerável. Ei-lo cercado pelas objectivas, sacudido como uma palha, um pouco esgazeado e perdido, mas exultante. Acaba de entrar na História.

Na vida, em torno de Houellebecq gravita a galáxia Houellebecq. Já não está tão solitário, o escritor goncourtizado: esquerdistas intelectuais de aparência igualmente desleixada e suja, mas também celebridades, escritores famosos e outras personagens mais controversas ou dificilmente classificáveis de que a França possui o segredo. Detenhamo-nos um instante num extraordinário jantar. A 14 de Novembro de 2010, dia de remodelação ministerial, o presidente Nicolas Sarkozy e a sua mulher, Carla Bruni, convidam, em honra de Houellebecq, algumas personalidades das artes e dos media. Por seu lado, Houellebecq convocou a editora-executiva da Playboy, que lhe inspirou uma personagem em A Possibilidade de Uma Ilha. Inapropriado. Convidou também o enigmático e muito direitista David Serra, que dirige uma revista on-line, Ring, e publica escritores como Laurent Obertone, autor de uma obra sobre a delinquência intitulada La France Orange Mécanique (o que lhe valeu ser classificado como de extrema-direita por certos editorialistas). A tendência na Ring é crítica em relação ao islão, pró-Bush e anti-sistema, com posições de direita, portanto. E Houellebecq afirma que “a Ring é o melhor site de informação”. Super-inapropriado… E porque não? O homem é inapropriado em todos os aspectos. As suas relações com personalidades ambíguas já não surpreendem muita gente.

Podem escrever-se coisas más com maus sentimentos
Dissemos que não se faz boa literatura com bons sentimentos. Mas, no momento em que é lançado Submissão, a ideia de que se podem escrever coisas más com maus sentimentos impõe-se. Quase ninguém ainda leu o livro que eclipsa todos os outros nesta rentrée (como frequentemente acontece com Houellebecq), mas o fragor surdo da polémica já se faz ouvir ao longe. Já um mês antes se levantavam as primeiras vozes a denunciar um livro que qualificam de râncido, nauseabundo, islamofóbico, assustador — em suma, perigoso e indigno de um grande escritor.

O primeiro problema é que Submissão vem colocar-se no cimo de uma pilha de livros que batem na mesma corda: a do declínio francês face ao perigo muçulmano. Há 15 anos que esta ideia regressa inabalavelmente ao primeiro plano. O último escândalo até à data é o livro do editorialista Eric Zemmour, muito famoso em França, intervindo na rádio, na TV, na imprensa e nos seus livros. Embora se considere eternamente censurado pelos bem-pensantes do “sistema”, vemo-lo por todo o lado, de manhã à noite. Zemmour publicou Le Suicide Français. Vendas recorde para este livro que traça um retrato arrasador da França e aponta sem hesitar os responsáveis pelo declínio: os imigrantes, os homossexuais, as mulheres (ou, pelo menos, as feministas) e, depois, a esquerda, e também, um pouco, a direita, todos os políticos e, claro, os jornalistas e os censores — em suma, tudo o que não é branco, sexagenário, católico e heterossexual.

Temos, então, um Houellebecq que cavalga esta onda salobra da islamização da França com o cenário da chegada ao poder de um Presidente da República muçulmano, chamado Mohammed Ben Abbas, e a poligamia, e a exclusão das mulheres do mundo do trabalho, e o estabelecimento de uma sharia light — tudo isto sob o olhar desolado de franceses ultrapassados e apáticos. E tudo isto é muito. Cá estamos, é o choque de Submissão. Coloca-se então a questão da responsabilidade das elites e dos intelectuais. Porque, se nos apraz designar como causa dos nossos males responsáveis saídos do povo (imigrantes, professores, minorias), porque não interrogarmo-nos sobre a responsabilidade dos responsáveis pelo país, os líderes de opinião, as elites: os políticos, os media e os intelectuais.

A escolha, por Houellebecq, deste tema candente que esgota os franceses há 15 anos pode ser considerada unicamente artística? Houellebecq é demasiado sensível ao ar do tempo e ao jogo mediático para ignorar a onda de indignação e a ressaca de aprovação que se vão seguir. Teve de prever e desejar o (bad) buzz. Aliás, no dia do lançamento do livro — 7 de Janeiro —, aos microfones da Radio France Inter, o crítico Augustin Trapenard leu uma passagem de Submissão em que Houellebecq fala do gosto do escritor Huysmans pela discórdia. O jornalista lê o que Houellebecq escreveu: “Huysmans tem, antes do mais, necessidade de causar escândalo, de chocar o burguês, naquilo que se parece bastante com um plano de carreira.”

“– Quer dizer que isso se aplica a mim?”, pergunta Michel Houellebecq.

“– Estou a colocar-lhe a questão. Você também choca o burguês”, responde Trapenard.

“– OK, aparentemente, sim.”

“– Trata-se de um plano de carreira?”

“- Hum… enfim, sim”, admite Houellebecq.

“– Ah, uma cacha, o plano de carreira de Michel Houellebecq: chocar o burguês.

“- Não mais do que Huysmans, mas também não menos.”

É claro que ninguém sonha associar Houellebecq aos últimos e trágicos acontecimentos em França. Cronologicamente, é impossível. Embora tenha pronunciado estas frases cheias de nuances em 2001, na revista Lire: “A religião mais estúpida é, apesar de tudo, o islão. Quando lemos o Corão, ficamos abismados. abismados! (…). O islão é uma religião perigosa, e isto desde que apareceu. Felizmente, está condenado. Para já, porque Deus não existe e, mesmo que sejamos estúpidos, acabamos por perceber isso. A longo prazo, a verdade triunfa. Depois, o islão está minado internamente pelo capitalismo. O que mais podemos desejar é que triunfe rapidamente. O materialismo é um mal menor. Os seus valores são desprezíveis mas, apesar de tudo, menos destrutivos, menos cruéis do que os do islão.”

É nessa altura que o advogado parisiense Emmanuel Pierrat encontra Houellebecq: “Michel Houellebecq tinha recusado o advogado da editora Flammarion, que queria que se fosse pedir desculpa publicamente, se possível, diante da Grande Mesquita de Paris. Ora, Houellebecq queria defender a sua liberdade de expressão e explicar-se. Procurou-me e falámos todos os dias durante esse Verão. Veja como ele é: não pode responder a uma pergunta sem fazer uma longa pausa e inalar profundamente o fumo de um cigarro. No tribunal, isso era impensável. Portanto, desabituei-o à força de adesivos e treinei-o para responder com voz forte e de forma clara e rápida. Foi uma loucura. Tínhamos contra nós o islão francês, a Liga Islâmica Mundial (um órgão da Arábia Saudita), a Federação Nacional dos Muçulmanos em França, as grandes mesquitas de Paris e Lyon, e a Liga dos Direitos do Homem, que o acusava de racismo. Durante um ano elaborámos uma lista de intelectuais que chamámos a apoiá-lo. Foi a debandada geral. Acabámos com cinco testemunhas, entre as quais o escritor Philippe Sollers e Fernando Arrabal, que fora perseguido sob a ditadura de Franco por blasfemar contra Cristo. Depois, era a indignação de jornalistas do mundo inteiro. Tínhamos o mundo intelectual contra nós ou à distância. Tinham acontecido os atentados do 11 de Setembro (as vendas do livro Plataforma caíram a pique). E depois, na altura do julgamento, houve outro atentado em Bali, contra uma discoteca. Ora esse era exactamente o cenário que Houellebecq descrevia em Plataforma. Pela minha parte, decidi invocar o ‘direito à blasfémia’. A audiência durou nove horas, a tensão era muita. Mas senti que a sala, a pouco e pouco, reflectia. No fim do dia, saímos do tribunal: tínhamos dado a volta ao assunto, Houellebecq tinha razão. Como por magia, os apoios que nunca tínhamos conseguido desataram a telefonar: ‘Já agora, lamento não ter estado presente, mas se precisares…’”

Jean Birnbaum, o chefe de redacção do Le Monde des Livres, mostrou-se severo no site do Monde.fr sobre Submissão. “Um livro que suscita a náusea, a revolta.” Confirma-nos ao telefone o seu ponto de vista, simultaneamente intransigente em relação ao aspecto puramente estilístico, mas igualmente em relação ao conteúdo: “Do ponto de vista literário, este livro não é um acontecimento. Somos muitos a dizê-lo: imita os seus imitadores, é bastante preguiçoso na sua construção, tem facilidades. Sente-se que ele pega nos mesmos truques, em temas que antes tratava com virtuosismo mas desta vez com um tom ‘já conhecem esta cantiga’.”

E sobre a noção de responsabilidade dos autores: devemos considerá-los puros escritores ou eles são outra coisa? “Não se pode exigir a um escritor que seja moderado ou prudente”, prossegue. “Mas como dizia Sartre: ‘As palavras são armas carregadas’. É preciso ter mesmo curta memória para não se ser reenviado a períodos muito obscuros da nossa História quando se lê em Submissão sobre a cobardia, sobre a pertença de todas as personagens a um grupo religioso por puro oportunismo, como isco para o dinheiro e para o sexo. Nunca por espiritualidade. Não há ninguém no livro que se converta ao islão por convicção. É incrível, Michel Houellebecq joga tudo no facto de que haverá um público amnésico, bastante desinvolto ideologicamente para se sair com o argumento estúpido ‘oh, afinal de contas não é mais do que um romance’. Houellebecq sabe muito bem quais as consequências políticas da linguagem e da literatura. Imagine-se o que um jovem da cultura muçulmana sente perante isto, é de chorar.”

Consequências do ruído mediático anti-árabe: à força de repetir, contribui para instalar uma atmosfera que permite validar uma desconfiança generalizada em relação aos muçulmanos: -> estigmatização -> discriminação -> exclusão -> retracção comunitária da população visada -> risco de recuperação por extremistas islamistas-> risco de radicalização dos indivíduos mais frágeis -> violência -> nova desconfiança generalizada, etc.

No dia em que foi lançado Submissão, 7 de Janeiro de 2015, a revista satírica Charlie Hebdo saiu também, com uma caricatura de Houellebecq na capa. E estas palavras sobre a figura do escritor: “As previsões do mago Houellebecq: em 2015 vou ficar sem dentes… Em 2022 observarei o Ramadão!”

Muito bad timing, o dia do lançamento de Submissão, que foi o dia da capa da Charlie Hebdo satirizando Houellebecq, e também o do ataque terrorista contra a revista que conduziria ao balanço dramático de 17 mortos. É difícil não nos sentirmos afectados por esta funesta carambola de acontecimentos, entre os quais sentimos existir uma ligação difusa.

É então que Houellebecq desaparece da confusão. Fazem-no sair de Paris, para sua segurança, e também, dizem-nos, porque precisava de descansar antes de retomar a promoção do livro. Outros fazem o mesmo, prudentemente, depois de terem defendido veementemente a tese de Houellebecq. Alain Finkielkraut, por exemplo, filósofo famoso, conhecido pelas suas posições de direita e anti-imigracionistas: o seu assessor de imprensa explica ao Ípsilon que doravante não dará mais entrevistas sobre Houellebecq, tendo em conta o que acaba de acontecer. Três dias antes, a 4 de Janeiro, ainda dizia no programa de Élisabeth Levy na rádio RCJ: “Michel Houellebecq é o nosso grande romancista do possível. Entre a clonagem generalizada e o futuro turístico da França, compraz-se no romance de antecipação. Soumission não foge à regra mas, desta vez, Houellebecq toca na ferida, e os progressistas de quem era a coqueluche, apesar do seu pessimismo, soltam ais (…). A grande preocupação daqueles que se apresentam como rebeldes, refractários, resistentes, é que nada obste às reivindicações do islão e à sua progressão, e essa é, a meu ver, a mistificação da esquerda actual, a sua suprema mentira: quando diz ‘mudança” quer dizer ‘submissão’.”

O seu amigo Emmanuel Carrère, também ele um escritor maior, Prémio Renaudot por Le Royaume, declara à propósito de Submissão: “Um livro profético, na linha de 1984 e de Admirável Mundo Novo, mas mais poderoso.”

Fouad Zeraoui está numa posição privilegiada para avaliar o impacto destes discursos na juventude muçulmana de França. Fundador da associação Kelma (“palavra”, em árabe), de uma revista gay e étnica, e promotor das noites Black Blanc Beur que organiza em Paris, tem como alvo uma população apanhada entre dois fogos: os muçulmanos homossexuais. Confrontados com o racismo fora de casa, são vítimas de homofobia dentro dela. Eis uma população de origem imigrante que poderia, dada a sua homossexualidade, sentir-se próxima de publicações antimuçulmanas. “Os muçulmanos sentem que são atacados sem terem a possibilidade de ripostar”, diz Zeraoui. “Mesmo que pudessem fazê-lo, torna-se muito difícil, na medida em que defrontam pugilistas profissionais que usam de má-fé e, por vezes, de verdades que carecem de respostas precisas e complexas. É difícil criticarmos a nossa comunidade numa altura em que a palavra de ordem é a união.” Para Zeraoui, não é possível deixar de se alinhar pela imagem viril do irmão ou do pai quando esta é atacada pelo mundo exterior. “A exacerbação, por parte dos muçulmanos, da virilidade (de que os radicais são a encarnação: o super-homem, o combatente, o homem que não sofre de nenhuma tara ocidental), é uma resposta a esse ataque à virilidade. E os gays saídos dessa comunidade muçulmana não têm remédio se não associar-se a essa palavra de ordem implícita: não haverá degenerados a manchar a nossa unidade, a nossa postura, o nosso orgulho singular. Há que ser masculino.” É a lei do silêncio, não se participa no debate.

Para Frédéric Pichon, licenciado em Árabe, professor de Geopolítica e consultor de comunicação social que contacta via Internet com jihadistas, se é evidente que alguns líderes de opinião instrumentalizam este filão antimuçulmano, não é isso que leva à radicalização. De resto, considera o romance de Houellebecq irrealista. Não seria possível eleger um presidente muçulmano “pela simples razão de que não existe uma comunidade muçulmana em França”: “Há muitas correntes no islão: a francesa, a magrebina, a turca, etc. Não conseguiriam chegar a um consenso sobre um presidente.” Em contrapartida, avança uma explicação curiosa. Há muito que a nossa cultura ocidental deixou de oferecer um modelo espiritual interessante. “Ela esqueceu o sagrado, já não é capaz de transmitir valores. O que uma parte da juventude muçulmana vai procurar noutro lado remete para o nosso vazio.” À força de ver vídeos de jihadistas, distinguiu três noções importantes, três elementos que, involuntariamente, são demonstrados pelos jovens que se filmam, por vezes, antes de abraçar a violência: “1) A regeneração: a nossa radicalização vai fazer-nos mudar de vida. Metro, trabalho, dormir, metro, trabalho: isso já eu rejeitava em França. Acabou-se o haxe e os desacatos, encontrei um sentido para a minha vida. 2) A emoção: os indivíduos choram de emoção antes de passar ao acto, manifestam o seu amor pelos ‘irmãos’ que encontraram. 3) A ascese: o aspecto marcial, sacrificial, são a sua nova vida.” De um lado, portanto, os líderes de opinião que estigmatizam; do outro, um vazio espiritual que nada vem preencher… até que se têm maus encontros.

O último problema é que Houellebecq finge não compreender bem o que querem dele. Ser responsável? Responsável por quê? Por nada, uma vez que, quando questionado, esquiva-se, faz-se de ingénuo. Na véspera do lançamento do livro, Houellebecq está no telejornal da noite da France 2: o pivô, David Pujadas, interroga-o sobre o quadro geral apresentado no livro, que alimenta o medo, e sobre a responsabilidade subjacente do autor no seu alastramento. Por três vezes Pujadas regressa à pergunta, por três vezes Houellebecq responde ao lado. O jornalista conclui: “Parece minimizar a questão.”

Então mostra reacções de leitores, entre as quais a de Malek Chebel, filósofo argelino, tradutor do Corão, antropólogo das religiões. E cita-o: “Quando se é um grande escritor, têm-se mais responsabilidades. Sente isso?” Resposta de Houellebecq: “Não me lembro de nenhum caso em que um romance tenha alterado o curso da História.” Seguem-se várias não-respostas, como “Nem uma coisa nem outra”, “Não sei, já não sei mesmo”, “Então não aprovo nem condeno [a personagem principal, que se converte ao islão por facilitismo]”.

Esta questão da responsabilidade dos intelectuais e da comunicação social dá azo a viva discussão no programa C à vous da France 5. Edwy Plenel, politicamente de esquerda, director do site Médiapart e ex-director do Le Monde, atira: “Nós, os media, alguns media, fazemos desta ficção o acontecimento do dia, fazemos de um escritor, que tem o direito de pensar o que quiser, o acontecimento político da rentrée. Após três meses de zemmouradas (…), consideramos normal, nós, jornalistas, fazer eco disto, promover isto (…). A que é que damos relevo? A que o islão é um problema, que os muçulmanos são um problema. Há 15 anos que somos um país que promove a discriminação em bloco de uma população devido à sua origem, ao seu credo, à sua cultura quando falamos dos muçulmanos, do islão… Dá-se conta da violência que isto exerce sobre as pessoas em causa? Michel Houellebecq é islamofóbico, reivindica isso mesmo há 15 anos, basta ler as suas entrevistas, e vocês fornecem-lhe um púlpito.”

Contactámos David Serra, director da revista Ring, que se mostra, pelo contrário, bastante entusiasta: “Para encontrar o espírito de uma época não mergulhamos nas notícias dos jornais, procuramos o escritor que ‘agarrou o século pela garganta’. Um autor autêntico atira sobre a multidão, rasga o espaço público, e eu fico contente por reencontrar um pouco o Michel Houellebecq de Plataforma, que me dá, desta vez, lições de política, de teologia, de moral e de economia (…). Não conheço as forças actualmente em jogo na cabeça de Michel Houellebecq, mas sinto que ainda é, na sua solidão genuína, uma força em acção num turbilhão de escritores com plásticas, com rostos idênticos (…). A identidade é o tema central, aquele que está em todas as cabeças, incluindo aquelas que parecem desprezá-lo. O seu público habitual desejava esse tema, mas já não o esperava. Michel Houellebecq parecia domesticado depois do Goncourt. Aparecia na comunicação social do entretenimento e já não parecia suscitar mais do que uma estranha unanimidade. Finalmente, mostrou que faz o que quer e que continua a ser, em última instância, o único senhor de si mesmo.”

Os acontecimentos actuais replicam os de 2001. Um livro polémico, declarações islamofóbicas então, um livro sensível hoje, e a coincidência de atentados hediondos. Catorze anos depois, o advogado Emmanuel Pierrat pensa como pensava e não hesita em afirmar: “Entre aqueles que desfilaram no domingo, em Paris, com a sua boa consciência, há quem tenha sido dos primeiros a dizer que a Charlie Hebdo estava a pedi-las e dos primeiros a atiçar o fogo nos subúrbios. O escritor não tem de estar preocupado com uma parte da população. Se assim for, entra-se numa lógica que vai contra os nossos princípios. Houellebecq é um escritor, não um panfletário ou um jornalista como Zemmour. A literatura é um território sagrado, temos o direito de forçar a nota. Temos direito ao mau gosto e à blasfémia. Se os escritores deixaram de ter direito a isso, então acabe-se já com a literatura.”

François Samuelson, agente e amigo de longa data de Houellebecq, toma também a defesa do escritor. Leu Submissão há oito meses, mas há uma semana que é solicitado por todos os órgãos de comunicação. Tem tempo para nos responder: “Constato a irresponsabilidade daqueles que censuram uma alegada islamofobia, que são os mesmos que denunciavam a islamofobia e o mau gosto das caricaturas da Charlie Hebdo. Faz-se como o pirómano que, depois de atear um incêndio, chama os bombeiros! O escritor escreve um livro, trata-se de uma fábula política, como Voltaire poderia ter escrito. Infelizmente, por um terrível acaso, a realidade foi ao encontro da ficção. É como se disséssemos a uma rapariga violada que foi bem feito porque se veste de forma provocante. Peço desculpa, estou um pouco exaltado, mas isto deixa-me louco.”

Samuelson acrescenta, por fim, que “está tudo bem”, Michel Houellebecq regressou a Paris. Não vamos jogar ao Rapto de Michel Houellebecq parte 2! “Está sobretudo consternado com a morte do seu amigo Bernard Maris [jornalista e economista que escreveu Michel Houellebecq économiste, retomando as análises económicas do autor que considerava pertinentes]. Foi isso que o atingiu. Está-se nas tintas para a matilha!”

Houellebecq vai sair-se bem. Sai-se sempre bem. Não será um Dorian Gray do avesso, trazendo no rosto os sulcos tortuosos da decadência de um pensamento ultra-sedutor que se corrompeu na busca de mais, de melhor, de sempre ainda mais forte. Acrobata de equilíbrio insolente mesmo quando o vento sopra, encontrará a forma de aterrar de pé. Afinal de contas, trata-se do grande homem das letras francesas. A sua produção romanesca cifra-se em seis livros. Seis livros apenas, uma obra imensa. Tivemos Houellebecq, temos agora Submissão, aguardamos a continuação.

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“Saudades da Lisboa desaparecida”

Sem Título

Extraído do jornal Público. Texto de Catarina Moura, Andrea Espadinha e Eduardo Ribeiro [ver imagens no site]:

Uma pintura do Terreiro do Paço, uma do Rossio, outra do Mosteiro dos Jerónimos e uma quarta do Convento de Mafra. No incío do ano, Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco, do Antiquário AR-PAB, compraram a um antiquário internacional – preferem não revelar nem o nome nem a nacionalidade – quatro óleos que mostram como eram estes lugares antes do terramoto de 1755. Desde Abril à venda, ainda não os conseguiram “encontrar o comprador certo”, diz ao PÚBLICO Pedro Aguiar-Branco – querem vendê-los juntos por 390 mil euros.

Álvaro Roquette e Pedro Aguiar-Branco não conseguiram descobrir o percurso destas obras – há quanto tempo estão longe de Portugal? São de autoria portuguesa? São perguntas que não conseguiram esclarecer no acto da compra, nem até agora. Além disso as pinturas não estão datadas nem assinadas.

Apesar de mostrarem vistas anteriores ao grande terramoto, podem ter sido pintadas posteriormente com base noutras fontes iconográficas, analisa Miguel Soromenho do Museu Nacional de Arte Antiga, no catálogo das pinturas produzido pelo antiquário. O historiador de arte explica aí como é possível perceber que as obras têm a mesma autoria: há “afinidades no tratamentos dos céus e na definição da paleta cromática” e “semelhanças na forma de dispor as figuras na composição”.

António Miranda, coordenador do Museu da Cidade, conheceu estas obras em Madrid, em Outubro de 2013 – antes de serem adquiridas pelos portugueses –, quando foram a leilão por 90 mil euros. Para o responsável do museu lisboeta, as pinturas são importantes “não pela sua qualidade pictórica”, diz, mas como “documento iconográfico dos costumes e da relação das pessoas com a cidade”.

Mais que novos pormenores sobre a Lisboa anterior ao terramoto de 1755, as pinturas do Antiquário AR-PAB são exemplo de como se reproduziam as vistas de uma cidade nos séculos XVIII e XIX: muitas vezes a partir de outras obras anteriores a que o artista tinha acesso – o que torna possível que representações da capital antes do sismo tenham sido pintadas quando essa cidade já não existia.

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“O caso da biblioteca que o conde inglês roubou ao bispo do Algarve”

Matéria de Luís Miguel Queirós publicada no site do jornal Público:

Numa concorrida assembleia geral, a Associação Faro 1540 aprovou por unanimidade, no dia 17 de Dezembro, a decisão de pedir à Universidade de Oxford que devolva a importante colecção de incunábulos que pertenceu ao bispo do Algarve D. Fernando Martins Mascarenhas, saqueada do Paço Episcopal, em 1596, pelo aristocrata e corsário inglês Robert Devereux, 2.º conde de Essex.

Criada em 2009 e vocacionada para a defesa do ambiente e do património, a Faro 1540 (o nome evoca a data de elevação a cidade da actual capital algarvia) enviou já a sua petição à Universidade de Oxford – a cuja biblioteca, a Bodleian Library, Devereux doou os livros pilhados –, e também ao Governo britânico e ao Palácio de Buckingham, residência oficial da rainha em Londres.

Além de pedir a devolução da biblioteca do bispo – cerca de 90 volumes –, a associação solicita ainda o regresso do único exemplar conhecido daquela que será a mais antiga obra impressa em Portugal: uma versão hebraica do Pentateuco (compilação dos primeiros cinco livros da Bíblia) impressa em Faro, no ano de 1487, pelo tipógrafo judeu Samuel Gacon. O dito exemplar está hoje na British Library, a biblioteca nacional do Reino Unido, e Bruno Lage, presidente da associação farense, admite que o volume possa ter integrado o saque do conde de Essex, ainda que reconheça não existirem provas que confirmem essa hipótese. 

“Foi quase de certeza pilhado nessa época, mas não se pode afirmar que estava no espólio do bispo”, disse ao PÚBLICO o responsável da Faro 1540, observando que este exemplar do Pentateuco “tem um valor simbólico muito elevado para Faro, mas é apenas mais um livro para os ingleses”.

A petição, que a associação também fez chegar ao secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, à Câmara Municipal de Faro e ao actual bispo do Algarve, D. Manuel Neto Quintas, termina com um voto de confiança nas instituições inglesas: “Estamos certos de que as autoridades britânicas saberão reconhecer a justiça da nossa pretensão e que farão justiça a um país amigo (onde vigora entre os dois países a mais antiga aliança diplomática do mundo) e a uma cidade que se orgulha da sua história milenar e do seu contributo para a cultura portuguesa e europeia.”

Se se vier a provar que o optimismo da Faro 1540 foi precipitado e os livros continuarem onde têm estado ao longo dos últimos 400 anos, a petição, divulgada na imprensa local e nacional, terá servido pelo menos para chamar a atenção dos farenses para a história da sua cidade. “Depois de aparecerem as notícias, percebemos que muita gente, em Faro, desconhecia este episódio”, diz Bruno Lage.

As armas do bispo
Nem as autoridades portuguesas nem as inglesas responderam até agora à associação algarvia. A Secretaria de Estado da Cultura confirmou ao PÚBLICO a recepção do documento, mas adianta apenas que este será “oportunamente analisado”. Já a Universidade de Oxford não esclarece se recebeu a petição e limita-se a informar que “não fará, neste momento, qualquer declaração ou comentário”.

De resto, mesmo que considerasse o assunto passível de ponderação, não seria muito provável que pudesse desde já responder positivamente ao pedido da Faro 1540, uma vez que este não foi, por enquanto, assumido pelo Estado português, e não é sequer claro a que concreta instituição deveria a universidade entregar os livros, caso admitisse devolvê-los.

O PÚBLICO pediu também à Bodleian Library uma relação dos livros que pertenceram indubitavelmente à biblioteca do bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, mas não recebeu ainda resposta a esta solicitação. Note-se que a petição não inventaria os títulos em causa, adiantando apenas que a colecção é “constituída por 65 títulos (num total de 91 volumes)”. Bruno Lage adianta ainda a informação de que 43 desses títulos seriam obras de carácter teológico – oito dos quais relativos a S. Tomás de Aquino – e 18 teriam natureza jurídica.

Num extenso artigo dedicado ao episódio do saque da biblioteca do bispo do Algarve, Peter Kingdon Booker, um inglês residente em Portugal que se tem dedicado ao estudo e divulgação da história algarvia, adianta que, além destes 65 títulos, que ostentam as armas do bispo gravadas a ouro, a biblioteca de Oxford possui ainda um outro livro e um manuscrito que apresentam dedicatórias a D. Fernando Martins Mascarenhas. Também estes foram doados por Essex ao seu amigo Thomas Bodley, que estava então a refundar a biblioteca da universidade inglesa, pelo que não há grandes dúvidas de que terão sido pilhados na mesma ocasião.

O texto de Booker, publicado no site da Algarve History Association, chama ainda a atenção para o facto de não ser certo que estes livros constituam a totalidade dos que Essex trouxe de Faro, quer porque o conde pode ter conservado alguns, quer porque a biblioteca do bispo pode não ter sido o único local da cidade onde Devereux pilhou livros.

E antes de atacar Faro, em Julho de 1596, Devereux já saqueara a cidade espanhola de Cádis, de onde igualmente trouxera alguns livros que depois ofereceu a Thomas Bodley. Booker precisa que a doação do aventureiro inglês à Bodleian Library totalizou 176 títulos, correspondentes a 215 volumes.

Se as armas do bispo garantem a proveniência das obras que as exibem, a ausência delas não assegura que não tenham sido igualmente pilhadas do Paço Episcopal. Algumas poderiam ter pertencido, sugere Bruno Lage, ao predecessor de D. Fernando Mascarenhas, o bispo D. Jerónimo Osório.

O ataque a Faro
Quando se dá o ataque do conde de Essex, Faro era cidade há pouco mais de meio século, por foral de D. João III, e só em 1577 recebera a sede do bispado algarvio, até então localizada em Silves. E Portugal estava submetido desde 1580 ao monarca castelhano, o que recomenda que se avalie este episódio no contexto do conflito entre Inglaterra e Espanha, que tivera um momento marcante em 1588 com a derrota da chamada Armada Invencível de Filipe II, e que iria prolongar-se pelos primeiros anos do século XVII.

O que não invalida o facto de Essex, como Devereux era conhecido em Inglaterra, ser mais um corsário, um aventureiro, do que propriamente um oficial devotado ao cumprimento escrupuloso das ordens da rainha. Espécie de playboy quinhentista, foi durante muito tempo o favorito de Isabel I e, embora esta tivesse mais 34 anos do que ele, os historiadores acreditam que terá sido também seu amante.

Indisciplinado por natureza, a rainha tratava-o com indulgência, mas Essex irritou-a ao casar-se sem a sua bênção, e voltou a irritá-la quando assinou, sem autorização, uma trégua com o líder da sublevação irlandesa. A gota de água foi a tentativa de golpe de Estado que o conde liderou em 1601, tentando tomar Londres. O facto de em tempos lhe ter dado o seu coração, não impediu Isabel de lhe reclamar a cabeça: Robert Devereux foi a última pessoa a ser decapitada na torre de Londres.

E tendo em conta que só em 1600, um ano antes de perder literalmente a cabeça, doou a Thomas Bodley os livros que roubara no Algarve, foi uma sorte que a valiosa colecção do bispo acabasse na biblioteca de Oxford. Se Essex tivesse esperado um pouco mais, não se sabe que destino poderia ter tido o espólio de um aristocrata caído em desgraça e executado.

Juntamente com o conde de Nottingham, Devereux liderou as tropas que desembarcaram perto de Faro, na barra então chamada Ferrobilhas, no dia 23 de Julho de 1596. Os ingleses dirigiram-se à cidade, que encontraram mal defendida, já que boa parte da guarnição fora enviada a reforçar as defesas de Lagos. Depois de ter conseguido um valiosíssimo saque em Cádis, que atacara no início desse mesmo mês de Julho, Essex ficou deveras desapontado com a pouca riqueza que encontrou em Faro, e terá sido por isso que, irritado, mandou atear uma série de fogos, que destruíram igrejas e conventos e deixaram a cidade em muito mau estado.

Um “triste incidente que mancha a memória das boas relações que Portugal mantém com a Inglaterra desde a assinatura do Tratado de Windsor” em 1386, lê-se na petição enviada às instituições britânicas pela Faro 1540. E a própria Bodleian Library, num conjunto de documentos nos quais apresenta a sua colecção de incunábulos, refere o assalto a Faro como um “ataque corsário” (“buccaneering raid”). E diz expressamente que Essex “saqueou” (“looted”) a biblioteca do bispo.

Caso a Universidade de Oxford se venha a sentir obrigada a responder a esta petição, é improvável que tente defender a legitimidade das acções do conde de Essex à luz do conflito anglo-espanhol. Mas há vários argumentos que pode esgrimir em favor da conservação dos livros em Oxford, e o texto de Peter Kingdon Booker já adianta alguns deles.
Booker conta que conheceu em 2007 uma inglesa, a quem trata apenas pelo nome próprio Dorothy, que já então andava a tentar convencer a Bodleian Library a devolver os livros saqueados por Essex em Faro. Dorothy cedeu a Booker as cartas que recebeu de um responsável da biblioteca de Oxford, nas quais este defende que a devolução generalizada de peças como estas levaria a que as bibliotecas e museus em todo o mundo entrassem num período de tumulto.

Lembrando que os séculos XVI e XVII assistiram a grandes convulsões políticas, o bibliotecário, cujo nome Booker não cita, recorda que algumas das obras da biblioteca original de Oxford estão hoje em São Petersburgo ou em Roma. E conclui (na transcrição de Booker): “Se virmos estes volumes como parte de uma vasta colecção europeia, não pode ter importância em que zona da Europa estão, desde que sejam bem preservados, que a sua localização seja conhecida e que estejam disponíveis para consulta.” 

É claro que, estando assegurado que os livros disporiam de idênticas condições em Faro, se poderia observar que o mesmo argumento, na sua indiferença por comezinhas questões de propriedade, deveria levar os responsáveis pela Bodleian Library a considerar que não havia nenhum motivo importante para os manter em Oxford.

Embora a biblioteca não pareça ter disponível no seu site uma lista dos livros provenientes da colecção do bispo, a consulta dos catálogos de incunábulos permite ir encontrando alguns, como uma compilação de obras de Guilelmus Alvernus – ou seja, o teólogo e filósofo escolástico Guillaume d’Auvergne (c.1180-1249), bispo de Paris –, cuja “encadernação do século XVI” tem gravadas, reza a respectiva descrição, “as armas de Fernando Martins Mascarenhas, bispo de Faro, às quais foi sobreposto, em ambas as capas, o brasão da Bodleian Library”. 

Outro exemplo é o das Visiones de Cataldus Parisius Siculus, um humanista siciliano que viveu e ensinou em Portugal a partir dos finais do século XV. O livro foi impresso em Lisboa, em 1500, pelo impressor e tradutor Valentim Fernandes, natural da Morávia. Chegado a Portugal em 1495, Fernandes, editor do livro de Marco Polo e correspondente de Albrecht Dürer, foi uma das figuras mais importantes dos primórdios do livro impresso em Portugal.

Para lá da relevância da obra, este é um caso interessante por se tratar de um volume que não exibe as armas do bispo, mas que, mesmo assim, os próprios bibliotecários de Oxford admitem que possa ter-lhe pertencido. Os registos de doações indicam que a Bodleian terá recebido dois exemplares deste livro, mas apenas um chegou ao presente. E não se sabe se o que se conserva foi comprado com o auxílio de uma mecenas, Alice Chamberlain, ou se é “o exemplar de Fernando Martins Mascarenhas, bispo de Faro, doado por Robert Devereux”.

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“Os meus livros do ano” – Carlos Fiolhais

Texto do professor Carlos Fiolhais, extraído do site do jornal Público:

Estando a Terra quase a completar mais uma volta em torno do Sol, é novamente tempo de balanço. Embora o ano não esteja ainda fechado, uma boa previsão é que o número de novos livros publicados em Portugal caiu, com a crise, para cerca de 13.500, um valor apenas comparável ao do início da década e bastante abaixo do pico de 17.331 atingido há cinco anos. Mesmo assim, ainda se publicaram, dia e noite, 1,5 livros em cada hora. Eis a minha escolha pessoal de dez livros de 2013. Privilegiei a originalidade, que não faltou. A ordem é alfabética do apelido do autor.

– Luís M. Bernardo, Cultura Científica em Portugal. Uma perspectiva histórica, Editora da Universidade do Porto. Um professor de Física do Porto traça um retrato do modo como a ciência foi sendo vista entre nós. Numa altura em que a Fundação para a Ciência e Tecnologia decidiu, num gesto inculto, encerrar a disciplina de História da Ciência, esta é uma obra que relata o modo, nem sempre bom, como temos encarado a ciência. Recomenda-se em particular aos políticos de ciência que insistem em ignorar a história: eles esquecem-se que ignorando o passado não se pode preparar o futuro.

– Afonso Cruz, Para Onde Vão os Guarda-chuvas, Alfaguara. O novo original de um escritor (também ilustrador, cineasta e músico) chegado há pouco à edição mas já premiado é isso mesmo: original. Parece no início um livro infantil (“História de Natal para crianças que já não acreditam no Pai Natal”), mas revela-se, numa vertiginosa sucessão de minicapítulos, um surpreendente romance em terras do Oriente. que termina com uma colecção de aforismos.

– David Deutsch, O Início do Infinito, Gradiva. Muito própria para estes tempos de crise, uma extraordinária obra de um físico israelita, pioneiro da computação quântica e professor em Oxford. Passando em revista os avanços verificados após a Revolução Científica, Deutsch afirma-se bastante optimista a respeito das capacidades da ciência. Graças à ciência, vamos ter futuro.

– Jorge Lima, Pensamentos do Dalai Lima, Abysmo. Este livro do prelo de uma pequena mas original editora lisboeta contém frases divertidíssimas, com um design gráfico bastante cuidado, da autoria de um publicitário. Por exemplo: “Um governo paralisado não é necessariamente mau quando se está à beira do abismo.”

Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, Dicionário de Lugares Imaginários, Tinta da China. Da autoria de um apaixonado pelos livros e pela literatura de origem argentina e de um especialista italiano de literatura de viagens, trata-se de um muito completo repositório de paisagens ficcionais.

– Paulo Mendes (fotos), A Biblioteca Joanina. The Joanine Library, Imprensa da Universidade de Coimbra. Apesar de ter uma pequena quota do livro como autor do texto introdutório, não posso deixar de recomendar este belo volume de fotografias da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, recentemente considerada de novo uma das mais belas do mundo. Com este coffee-table book bilingue aquela universidade encerra o ano em que passou a ser Património da Humanidade.

– Ion Morris, O Domínio do Ocidente, Bertrand. Um historiador inglês que ensina na Universidade de Stanford apresenta uma comparação magistral entre o Ocidente e o Oriente. O Ocidente, por enquanto, ainda domina… Em inglês há um segundo volume, The Measurement of Civilization, que ensina a comparar o desenvolvimento de povos e culturas.

– Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari (orgs.), Fernando Pessoa: Eu sou uma antologia. 136 autores fictícios, Tinta da China. A multiplicidade estonteante de Pessoa aparece, maior do que nunca, neste livro cujo primeiro autor é um estudioso colombiano distinguido este ano com o Prémio Eduardo Lourenço. Em 2014 passarão os cem anos da estreia literária de Caeiro, Reis e Campos, mas há muito mais pessoas no poeta da Mensagem. Como António Mora, que a Assírio e Alvim revelou este ano.

– Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, Caminho. Um ensaio fragmentado, onde o leitor entra por um qualquer sítio e sai onde quiser. E sai mais enriquecido, por obra e graça não só do autor do texto, hoje já consagrado com traduções em meia centena de países, mas também do colectivo responsável pelas fotografias.

– Padre António Vieira, A Chave dos Profetas, Círculo de Leitores. Na monumental obra vieirina, que o Círculo começou este ano a publicar, distingo este volume coordenado por Pedro Calafate, que é também responsável pela edição completa juntamente com José Eduardo Franco. O pregador jesuíta vai finalmente ter edição integral, incluindo inéditos.

Boas leituras e Bom Ano de 2014!

Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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“O Brasil na rua (5): coronel Ibis é retirado da Academia de Polícia Militar, mas vê bem nova missão”

Texto de Alexandra Lucas Coelho publicado em seu blog, Atlântico-Sul:

Até fim do ano haverá uma mudança na polícia que está nas ruas do Rio de Janeiro, garante o coronel Ibis. O comando da PM acaba de o tirar da direcção da Academia. Ele encara com optimismo a mudança para o QG.

O coronel Ibis Silva Pereira tem uma visão positiva dos próximos tempos no Rio de Janeiro: “Eu ousaria dizer que até ano que vem vamos assistir a uma grande transformação na polícia que está nas ruas, te garanto, pode me cobrar.” Soube há 48 horas que a 23 de Agosto deixará a direcção da Academia de Polícia Militar (PM), onde liderava uma formação inovadora, e irá coordenar a Direcção de Ensino da PM, no Quartel General (QG), como sub-director. Uma surpresa, para ele e para os alunos, mas que Ibis está a encarar como “promoção”.

Esta conversa ao telefone aconteceu ontem à tarde. De manhã, saíra no PÚBLICO o texto sobre a visão de Ibis como formador da nova polícia do Rio. Logo depois a repórter recebia a informação de que o coronel fora retirado do cargo na terça-feira, dia em que estreava na academia um inédito ciclo de palestras com 12 pensadores convidados pelo curador Adauto Novaes, e proposto pela FLUPP (festa literária nas favelas com UPP, Unidades de Polícia Pacificadora).

A notícia de que Ibis fora chamado ao QG correu entre os oficiais e praças que ouviam o filósofo francês Francis Wolff, na primeira palestra. O ambiente era de apreensão, conta ao PÚBLICO Júlio Ludemir, da FLUPP. “Percebi que a resposta à palestra não fora tão participada. Quando perguntei porquê ao coronel Ibis, ele respondeu que todos estavam sabendo que ele iria ao QG, que quando se vai ao QG é para subir ou descer, e que todos os cargos acima dele já tinham sido preenchidos pelo novo comando.” Há 10 dias, no meio de múltiplas críticas à acção da polícia, foi nomeado um novo comandante-geral da PM no Rio de Janeiro, o coronel José Luís Castro Menezes.

Quarta à noite, quando Ludemir conseguiu falar com Ibis para saber o que acontecera no QG, ele estava “abatido” com o afastamento da academia: “Mas o tempo inteiro preocupado em garantir o ciclo de palestras, garantindo que o sucessor era um seu amigo de escola e que iria trabalhar [na Direcção de Ensino] com uma pessoa por quem tem imenso respeito.”

Ontem, quando o PÚBLICO falou com o coronel, Ibis confirmou que lhe custará o afastamento. “Confesso que demorou a cair a ficha [tomar consciência]. Tenho uma ligação muito afectuosa com os meus alunos. Acredito numa pedagogia do amor. Cuido daqueles meninos como se fossem meus filhos, então o meu coração ficou estremecido. Senti como um pai que se vai separar dos filhos.” Mas quando a ficha caiu, a sua conclusão foi: “É uma chance que o comando está dando de a gente transformar a polícia militar, implementar esse processo de pacificação [nas favelas].”

O que ouviu no QG?: “Que o meu trabalho era muito reconhecido e me convidavam para a Direcção de Ensino. Como é a cúpula nessa área, eu não estava preparado, não esperava um convite tão honroso.” Será sub-director do coronel Antonio Carballo, oficial com quem tem “uma afinidade há 30 anos”. Em suma, crê que a sua visão para uma nova polícia será reforçada? “Sem dúvida. E a sociedade vai verificar isso concretamente nas ruas. Pensamos ampliar a formação actuando na cultura policial: os símbolos, o ideário, repensar o próprio papel da instituição.”

Não teme que estar no QG o afaste do terreno? “Não. Nunca me afasto da sala de aula. Serei um sub-director muito presente na academia.” Onde o novo director será outro parceiro seu, o coronel Cristiano Gaspar. “É um dos oficiais mais brilhantes que conheço, há 28 anos, um dos grandes amigos que tenho, formado em Direito, espírito democrático, brilhante orador, um intelectual. Na quarta-feira vou apresentá-lo ao Adauto, ao pessoal da FLUPP. A escola não vai perder com a minha saída. É só a questão dos afectos.”

O ciclo de pensadores “é um compromisso da instituição”, o próprio comando o encarregou de continuar à frente desse projecto, até Outubro. “A intelectualidade dentro da polícia é uma coisa que a gente precisa de espalhar.” E no novo cargo terá outra amplitude: “Dialogamos com as direcções de ensino de outros estados.” Em Dezembro sai para a rua a primeira leva de 167 oficiais formados por ele, “com um currículo que já dialoga com uma filosofia de polícia de proximidade”.

Entretanto, Ibis continuará a ser o presidente do inquérito sobre as nove pessoas mortas pelo BOPE (tropa de elite da PM) na favela da Maré durante as manifestações de Junho.

 

A ascensão do BOPE

Nas movimentações que neste momento acontecem dentro da PM, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, grande conhecedor de segurança pública, alerta para o “deslocamento de oficiais do BOPE para posições-chave na nova estrutura”. Esse é um dos factores que o leva a manter um “cepticismo”. Outro é “o deslocamento de um ex-porta-voz, o coronel Frederico Caldas, para uma posição central, a de comandante das UPP”. Este antropólogo vê-o como “uma figura identificada com a instituição, incapaz de palavras contrárias à orientação oficial”, uma espécie de “político da PM”, que traduzirá uma visão das UPP como “marketing e relações públicas”.

Ou seja há sinais contrários à visão de Ibis. Entretanto, Ibis declara-se optimista. “Vamos ver se o optimismo vai se justificar”, acautela Luiz Eduardo. “Se há um respaldo político sufiente. Tomara que sim. O Ibis e o Carballo são as duas estrelas do pensamento crítico na PM. Mas eu conheço a marca conservadora da instituição, que é muito forte. É prudente mantermos uma reserva de cepticismo. E a gente não deve iludir-se quanto a isto: os avanços no Rio não substituem uma profunda transformação da polícia em todo o Brasil, o que implica mudanças na Constituição.”

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“O Brasil na rua (4): a polícia tem que deixar de ser militar”

Texto de Alexandra Lucas Coelho publicado em seu blog, Atlântico-Sul:

É pela descriminalização de todas as drogas. Acha que a polícia abusou da força nos protestos. Quer acabar com a lógica do inimigo. E acabava hoje com a caveira do BOPE. O coronel Ibis está a formar a nova polícia do Rio de Janeiro.

O letreiro diz: “Aqui nascem os Pacificadores!” É a entrada da Academia de Polícia Militar D. João VI, na periferia do Rio de Janeiro, relvados entre quartéis. Daqui saem há décadas os polícias militares (PM’S) do estado. E nunca a polícia foi tão discutida como nos actuais protestos, com mortos, feridos, detidos e desaparecidos. “No fim do século XIX isto era uma fazenda de café”, diz o coronel Ibis Silva Pereira, 50 anos, algo de escoteiro já sem cabelo e com anel de tucumã, como os católicos dos movimentos sociais. Dirige a academia desde fins de 2011. Os resultados ainda não estão na rua.

Sol da manhã na varanda, ele convida a entrar no gabinete, mesa cheia de papéis, CD’s e livros junto a uma TV. Os CD’s são gravações de Beethoven. A pilha dos livros começa com Henrich Heine e segue com “Pequeno Manual de Inestética”, de Alain Badiou. Um poeta alemão que estava na cabeceira de Marx e um filósofo francês de esquerda. “Ah, adoro o Badiou”, comenta o coronel. Outros livros da pilha: “Borges no Brasil”, Mário de Andrade, Alberto Manguel, psicanálise. Quem espera confirmar aqui o que já sabe sobre a PM, espere para ouvir.

Há um crucifixo de madeira na parede. As duas portas estão abertas. Entra Alaíde Rodrigues, pedagoga. Trabalha com a PM no incentivo à leitura. “Eu e o coronel acreditamos que só terá educação com literatura”, diz, enérgica. “Isso humaniza, muda o clima”, reforça o coronel. E vão por aí fora:

— A nova polícia tem de mostrar que respeita os direitos humanos, porque a polícia começa nos actos de socialização, para não chegar à punição.

— Estamos começando isso para uma nova geração.

— Se você não lê, não pensa, se não pensa não tem democracia.

— A gente quer formar cidadãos.

Alaíde despede-se, o coronel mostra à repórter o salão contíguo, onde várias mulheres preparam um “atelier” de ikebanas, a arte floral japonesa. A repórter combinou a visita na véspera à noite, ao saber que Ibis seria anfitrião de palestras sobre violência. Depois da guerra na rua, pôr oficiais a fazer ikebanas parece humor negro, mas Ibis leva-o muito a sério: “É uma forma de diminuir o gosto pelas armas.” Inspirada na polícia do Japão.

 

Banalidade do mal

 

Sentamo-nos na outra ponta do salão. A estreia do filme “Hannah Arendt” coincidiu com os protestos. A repórter esteve num concorrido debate pós-exibição, que discutiu o comportamento da polícia brasileira a partir da “banalidade do mal” teorizada pela filósofa alemã. Ao cobrir o julgamento do nazi Eichmann, Arendt concluiu que o mal extremo não é diabólico, é banal. Vem do momento em que o indivíduo, integrado numa máquina, deixa de pensar.

“Acredito que a melhor maneira de não reproduzir a banalidade do mal é o pensamento”, diz Ibis. “Não vi o filme mas li Arendt. A tragédia do mal é que se insinua, e o pensamento pode impedir que se manifeste. Estamos tentando fazer os alunos pensar, trabalhar os afectos.” Uma nova prática “para sustentar a filosofia das UPP’s”, as Unidades de Polícia Pacificadora que se estão a instalar nas favelas do Rio. “Vim para humanizar a formação. Não dá para pensar esse projecto UPP sem repensar a formação. Não se trata só de saberes do direito criminal e civil, porque o policial vai lidar com pessoas e com situações-limite.”

Que avaliação faz do comportamento policial no Rio nestes protestos? “Excedemos o uso da força. Havia um conjunto de subjectividades na rua, a polícia não estava preparada.”

No debate do filme, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, que conhece a fundo questões de segurança pública, falou da obsessão com o “inimigo” na lógica policial. “Concordo”, diz Ibis. “A sociedade brasileira tem um autoritarismo socialmente admitido, que vem de um passado trágico. O Brasil tem 500 anos de história e 400 de escravidão. Isso explica o sucesso de um personagem fascista como o Capitão Nascimento [do maior êxito do cinema brasileiro, “Tropa de Elite”]. Aquele filme é uma denúncia do fascismo e a fantasia do BOPE [tropa de elite da PM] foi a mais vendida no carnaval de 2010. Esse é o nó que a gente precisa desatar.”

A propósito: durante os protestos, o BOPE entrou pela favela da Maré a matar avulso, segundo múltiplos testemunhos de moradores. Morreram nove pessoas. Retaliação, tudo indica, pela morte de um polícia. Ibis acena enquanto a repórter relembra o caso. “O presidente do inquérito sou eu”, anuncia. “Vou até pedir prorrogação.” Então, como tem sido o diálogo com o Observatório das Favelas, dirigido por Jailson de Souza e Silva na Maré? “Maravilhoso. E com a REDES [outra organização importante da Maré] também.”

Não podendo falar deste inquérito, Ibis comenta: “Há um passado de violência nas ruas todos os dias. E a ditadura militar trouxe a ideologia da defesa nacional, com o militante comunista como inimigo interno. O pensamento foi colonizado por essa lógica de combate. Daí a olhar a favela como um território a ser conquistado, e o tráfico como inimigo, é um passo. O belicismo atravessa todo o sistema da polícia militar e civil, os presídios, o sistema jurídico.”

Não começa no nome, Polícia Militar? “Devia ser mudado para Guarda Civil, ou Guarda Nacional Republicana, como em Portugal”, atalha Ibis. “Mas não adianta pensar a reforma da polícia sem pensar o sistema criminal. Já visitou um presídio? É um verdadeiro horror. Aí você vê a actualidade do processo de que fala Hannah Arendt. Se dá mais valor a uma granada no Leblon [o bairro chique do governador Sérgio Cabral, onde manifestantes partiram lojas e bancos] do que a nove pessoas que morrem na Maré. Como é actual que esse filme esteja passando.” Podia ser o próprio Luiz Eduardo Soares a falar. “Um grande intelectual, nunca trabalhei com ele mas admiro-o muito. Talvez seja dos grandes conhecedores da violência no Brasil.”

Quem teve a ideia deste ciclo sobre “Violência interior”, que permitirá aos futuros oficiais e praças ouvir 12 pensadores escolhidos por Adauto Novaes, curador reputadíssimo? “O Júlio Ludemir [da FLUPP, feira literária das favelas com UPP] veio aqui um dia. Depois trouxeram o professor Adauto Novaes, que eu só conhecia desse trabalho maravilhoso de reunir pensadores há 30 anos. Tenho capacidade para 450 pessoas em cada palestra”. A primeira, 13 de Agosto, com o francês Francis Wolff, já terá acontecido quando esta reportagem sair. O ciclo vai até Novembro. “Isto é inédito, a gente nunca fez nada desse tamanho.”

E como é que um formador assim vê o caso Amarildo, ajudante de predreiro que nunca mais foi visto desde que a polícia da UPP da Rocinha o levou, há um mês? Num país em que quase 100 mil pessoas desapareceram nos últimos 20 anos, “Cadê o Amarildo?” passou a ser pergunta-lema dos protestos. “Tem que ter essa pergunta e a polícia tem que dar conta dela.” A polícia diz que tanto o seu GPS como as suas câmaras, que podiam conter dados importantes, coincidiram em não funcionar essa noite. Que pensa Ibis disso? “Ou é uma tremenda coincidência ou é má fé. O inquérito policial tem que dar conta disso.”

E o que está a acontecer nas UPP? Em favelas como a Rocinha, o Vidigal, o Complexo do Alemão, a polícia não está a conseguir segurar o que implantou. Há tiros, mortes, ataques. Visto como crucial na preparação para Copa e Olimpíadas, o projecto das UPP está a desmoronar? “Não sei dizer o que está acontecendo. É um momento chave desse processo, que começou de maneira eufórica e depois caiu no lugar comum. Temos de entender como mudou a vida nas comunidades, quem está no asfalto não imagina como essas comunidades sofriam.” Ibis refere-se à lei do tráfico. E diz: “Não acredito que a polícia possa dar conta da repressão do tráfico. Só se a gente apostar em prevenção. Sou favorável à descriminalização de todas as drogas, o que não quer dizer liberalização, quer dizer que o estado vai ter de enfrentar isso de outra forma que não o direito penal.”

 

Teologia da Libertação

Porquê o anel de tucumã? “Nasci dentro da igreja, fã ardoroso da Teologia da Libertação.” Nas periferias do Rio, primeiro Penha, depois Anchieta. “Até hoje sou ligado na militância cristã. A gente tem de construir o Reino de Deus na terra.” As suas duas filhas adolescentes não foram a manifestações. “Se me tivessem pedido eu deixaria.” Mas adolescentes como elas foram encurralados por gás e balas de borracha. Polícia a lançar gás para bares, até hospitais? “Um excesso.” Balas de borracha contra o tronco e a cabeça? Ibis acena. “Foi um fenómeno de massa, ninguém esperava, estamos fazendo a crítica de tudo, repensando o currículo.”

As manifestações reforçaram a imagem de uma polícia violenta, que além disso é vista como corrupta. A “banda podre” da PM tornou-se expressão comum para os polícias metidos em tráfico, extorsão, execução. “É uma boa expressão, adequada. A corrupção policial é consequência da violência. O problema é esse autoritarismo instituído. Além de melhorar a selecção e formação, temos de investir em controle externo da polícia e numa legislação que dê conta das investigações internas. Eu acredito que pela humanização se reduz a violência. Aquele que se corrompe usa a força.”

Entretanto, já houve uma mudança importante de paradigma na polícia, diz. “É uma decisão da secretaria de segurança: quanto mais vítimas, pior a polícia será avaliada. Durante os anos 90, premiava-se o enfrentamento com letalidade. Isso é uma política de bárbaros e hoje a compreensão é outra.” Quanto mais letal, pior. Mas não é um problema quando os números de mortos pela polícia baixam e sobem os desaparecidos? Ibis concorda: “Seria um bom passo que no índice de letalidade sejam contemplados os desaparecidos.” O ideal, resume, “é que o polícia use a força sem gostar dela”.

O símbolo do BOPE é a caveira, e está no blindado que sobe o morro: o caveirão. “Acho um horror. Inaceitável, acabava com ela já. Entendo o símbolo, esses profissionais trabalham em situações-limite e a caveira representa a vitória sobre a morte. Mas aí temos um grande problema: quando a gente forma um profissional que não pode ter medo, que tem suportar o drama da morte no seu limite, o que sobra de humano?”

Ibis conta que na sua formação viu um colega cair com um tiro na cabeça. “Como impedir que isso se transforme em chacina? Que embruteça? Eu tenho de apostar tudo nas paixões alegres, para usar a linguagem de Espinoza. A caveira trabalha a dimensão do medo por contraponto à amizade, ao respeito, ao amor. Só há um jeito de contrapor as paixões tristes, as paixões alegres. Porque não é a razão que escolhe entre o bem e o mal.” Ou seja, não basta trabalhar a razão. E o coronel Ibis remata com mais uma fuga ao cliché: “Esta nossa alegria esconde um lado triste, raivoso, que não gostamos de mostrar. Não foi por acaso que o Lévi-Strauss baptizou o seu livro de ‘Tristes Trópicos’. O Carnaval esconde uma imensa tristeza, e para combater isso só as paixões alegres.”

Formado em Direito, com pós-graduação em Filosofia e mestrado em História, Ibis está a escrever uma biografia do coronel Cerqueira, “o primeiro negro comandante da PM, assassinado em 1999”. Fala de “esquizofrenia” na política de segurança do Rio, ao longo das décadas, consoante os governantes. “E a polícia na rua é o resultado dessa esquizofrenia.” Então um novo conceito de segurança “tem de ser um projecto do Brasil, porque o problema da violência policial é muito profundo, e encontra a violência da sociedade, e o cliché do povo pacífico de bem com a vida.”

Dias depois desta visita, a repórter pediu a Luiz Eduardo Soares que comentasse o que a acção de Ibis pode significar. “É um homem extraordinário, não apenas um profissional fora da curva mas um ser humano muito especial, com essa coragem para reflectir sobre a sua própria instituição, a despeito de cálculos de carreira. Não me parece disposto a sacrificar as suas convicções a favor de uma estratégia.” O problema, diz, é o quanto ele está isolado. “Até onde vai o poder individual num posto desse tipo? A qualquer momento é substituído e esse trabalho cai, por não haver uma compreensão global dentro da polícia.” O próprio Luiz Eduardo, ex-secretário de segurança, viveu uma experiência de “derrota e estagnação”.

Mas o contexto das manifestações é favorável a discutir direitos humanos e questões de segurança pública, tal como o horizonte político do Rio, a tender para a esquerda, crê Luiz Eduardo. “A conjuntura aponta para uma desmilitarização, e esse será o momento do coronel Ibis.”

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“Morreu o escritor Urbano Tavares Rodrigues”

Texto de Isabel Lucas enviado por Jorge Fernandes da Silveira:

O escritor, jornalista e militante do PCP, Urbano Tavares Rodrigues morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa.

O escritor estava internado há três dias. A notícia soube-se através da página de Facebook “Urbano Tavares Rodrigues – escritor” e foi publicada pela filha, a escritora, Isabel Fraga, onde diz: “O meu pai acaba de nos deixar.

Estava internado nos capuchos há 3 dias. Não tenho mais informações. Soube agora mesmo.” O PÚBLICO confirmou.

Urbano Tavares Rodrigues nasceu em Lisboa, a 6 de Dezembro de 1923, filho de uma família de grandes proprietários agrícolas de Moura, Alentejo. Andou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde cursou Filologia Românica. Por razões políticas foi impedido de ensinar em Portugal, esteve preso em Caxias e acabou por exilar-se em França, onde conviveu com grande intelectuais da década de 1950.

Regressou a Portugal depois da revolução de 25 de Abril de 1974. Foi professor na Faculdade de Letras, crítico literário e esteve sempre ligado activamente ao PCP.

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Poesia de Ruy Belo publicada no Brasil

Matéria publicada no jornal português Público:

Ruy Belo e Chico Buarque vão encontrar-se finalmente. O poeta português admirava o músico e escritor brasileiro, que não chegou a conhecer. Conta Teresa Belo, sua mulher, ao jornal O Globo, que o autor de Homem de Palavra(s) encomendava muitos vinis do cantor aos amigos que viajavam para o Brasil.

Belo interessava-se muito por nomes da literatura brasileira como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, mas Chico Buarque era Chico Buarque. “Ficava muito comovido com as canções e admirava a postura política dele”, lembra Teresa Belo.

Agora, o cantor e compositor, um dos mais populares da música brasileira, é um dos convidados de um documentário sobre o poeta português que será lançado no Brasil até ao fim do ano. Vai ler dois dos seus poemas, Orla marítima e Oh as casas as casas as casas. O documentário Ruy Belo, era uma vez, de Nuno Costa Santos, reúne críticos e escritores dos dois lados do Atlântico à volta deste homem que sempre cruzou a poesia com a política ou a espiritualidade e que viria a morrer em 1978, aos 45 anos, deixando versos como estes: “É triste ir pela vida como quem/ regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro”.

Segundo o jornal brasileiro, o documentário de Costa Santos, faz parte de uma espécie de “operação Ruy Belo”, destinada a dar a conhecer ao público brasileiro um autor fundamental da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, a que chamam com frequência “poesia pós-Pessoa”. Dessa “operação” faz parte a primeira edição brasileira de toda a bibliografia do poeta, 35 anos depois da sua morte.

Nas estantes das livrarias brasileiras os seus novos leitores já podem encontrar Aquele Grande Rio Eufrates (1961), título de estreia, e os dois seguintes – O Problema da Habitação (1962) e Boca Bilíngue (1966). Mas até ao fim do ano a editora 7Letras promete pôr à venda os seis volumes que faltam para completar a integral do autor de A Margem da Alegria (1974), o homem que traduziu Borges e Lorca e que amava o mar. “Amei a mulher amei a terra amei o mar/ amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar/ De muitas delas de resto falei”, escreveu.

Cada um dos volumes lançados pela 7Letras, numa colecção organizada pelo escritor e crítico Manoel Ricardo de Lima, terá um prefácio de um poeta brasileiro diferente, procurando fazer a ponte entre o autor português dos anos 1960 e 70 e o leitor brasileiro contemporâneo.

Para o autor de um desses prefácios (o de Boca Bilíngue), Tarso de Melo, é urgente que os grandes poetas portugueses da segunda metade do século XX, com destaque para Belo, Sophia de Mello Breyner e Herberto Helder, sejam conhecidos no Brasil. “Esses autores são capazes de nos fazer rever não apenas a forma como nos relacionamos com a poesia portuguesa, mas com nossa própria poesia”, escreve o também poeta, lembrando que em Boca Bilíngue, Belo, então com 33 anos, demonstra o seu desencanto com um país mergulhado na ditadura do Estado Novo.

É por isso que nele podemos ler poemas como Morte ao meio-dia, com versos assim: “No meu país não acontece nada/ o corpo curva ao peso de uma alma que não sente/ Todos temos janela para o mar voltada/ o fisco vela e a palavra era para toda a gente”.

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