Perfil de Rubem Fonseca

João Gabriel de Lima, Malu Porto e Tiago Petrik fizeram, para a revista Bravo, um excelente perfil de Rubem Fonseca. Pelo que me lembro, trata-se de uma das melhores matérias já publicadas na Bravo. Contam-se uma série de histórias da vida de Rubem Fonseca, que ajudam a esclarecer alguns traços recorrentes em sua obra. Em O Seminarista, último romance do autor, recém-lançado pela Agir, são muitos as características do narrador que podem ser associadas a Rubem Fonseca. Abaixo, reproduzo a matéria:

 

O personagem principal do romance O Seminarista se chama José, gosta de árvores, torce pelo Vasco da Gama, considera o vinho a única bebida digna de acompanhar uma refeição, ouve rock, é apaixonado por poesia e tem um amigo tira de sobrenome Vásquez. O autor de O Seminarista, Rubem Fonseca, também se chama José – José Rubem, ou Zé Rubem, para os amigos. Em uma das crônicas publicadas na coletânea O Romance Morreu, assume-se como “dendrólatra”, nome que se dá a alguém que gosta de árvores. Torce pelo Vasco da Gama, time carioca associado aos descendentes de portugueses, como ele. Na família de origem lusitana aprendeu a apreciar o vinho. Tornou-se fã de rock desde que, nos anos 60, descobriu o gênero nos discos da filha Maria Beatriz, a Bia, então uma adolescente. É fã de poesia e amigo do delegado Ivan Vasques, que inspirou alguns dos tiras de seus livros.

Procurar o autor nos personagens de uma obra de ficção é um dos maiores prazeres da leitura. No caso de José Rubem, essa compulsão é especialmente forte, em parte por culpa do próprio escritor. Desde que conquistou a notoriedade nos anos 60 com três esplêndidos volumes de contos – Os Prisioneiros (1963), A Coleira do Cão (1965) e Lúcia McCartney (1967) -, José Rubem passou a utilizar uma ferramenta poderosa para despertar a curiosidade alheia. Ele se recusa a dar entrevistas e a falar em público. (Apenas no Brasil, diga-se. No exterior, faz palestras concorridíssimas. Recentemente, no México, reuniu em torno dele os desafetos Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, arrastando um público de mais de mil pessoas.) Essa curiosidade se intensificou nos últimos tempos, em que José Rubem passou a escrever crônicas autobiográficas para a internet. Nelas, o autor fala sobre a própria infância, sobre suas viagens a Nova York, Berlim e Israel e sobre suas brasileiríssimas paixões por carnaval e futebol.

Contribui ainda para atiçar a curiosidade o fato de José Rubem transferir os próprios hábitos e gostos a seus personagens. Alguns desses hábitos o escritor foi obrigado a abandonar, agora que é um homem de 84 anos. O advogado Mandrake, de A Grande Arte, gosta de beber vinho e aprecia charutos. O José Rubem da vida real não bebe mais. Recentemente, teve uma doença não diagnosticada que o tornou alérgico a álcool. Como seu histórico médico relata duas operações de úlcera (mal que, aliás, atormenta o comissário Mattos de Agosto), José Rubem decidiu matar a sede apenas com sucos e água. Quem conta é o advogado Alberto Venancio Filho, titular da cadeira 25 da Academia Brasileira de Letras, que todas as terças-feiras almoça com José Rubem e com o escritor João Ubaldo Ribeiro num bar do bairro carioca do Leblon. “Ele é de uma frugalidade tremenda”, diz Alberto Venancio.

Segundo conta seu filho José Henrique Fonseca, que é cineasta, José Rubem parou também de fumar charutos. Ele cultivava o hábito desde a juventude. Ao contrário de Mandrake, que se comprazia em citar marcas e descrever os sabores sorvidos e inalados, José Rubem nunca foi um pernóstico. Nos charutos, talvez por causa do nome, ele sempre preferiu os cubanos Fonseca, mas se contentava com os baianos Pimentel número 2, mais baratos. Começou a gostar de vinhos numa época em que não havia a oferta de castas e denominações de origem que há hoje. Nos anos 50 e 60, comprava os portugueses Periquita e Casal Garcia na loja Lidador, no centro do Rio de Janeiro, e por muito tempo seguiu consumindo essas marcas.

Será que tudo o que um escritor tem a dizer sobre si próprio está em sua obra, como costuma dizer José Rubem quando quer se esquivar de uma entrevista? Trata-se de uma boa frase de efeito – que, como toda frase de efeito, é apenas meia verdade. Conhecer a biografia do autor é, sim, importante para compreender o que ele escreve. Não as fofocas e os mexericos, mas as experiências que contribuíram para a formação de seu universo literário. De acordo com os críticos, a obra de José Rubem se destaca no panorama da literatura brasileira justamente por conta desse universo. Ele foi um dos primeiros escritores pátrios a estudar a fundo a literatura anglo-saxônica, principalmente americana, sendo influenciado por ela. Também rejeitou a cartilha marxista, o que tavez tenha sido positivo para sua obra.

José Rubem Fonseca está de volta às livrarias com O Seminarista, uma bem-sucedida incursão pelo mundo do thriller. Trata-se de um romance curto, movimentado e, como um filme de Quentin Tarantino, extremamente divertido apesar das cenas ultraviolentas. O Seminarista e a reedição do conto A Arte de Andar pelas Ruas do Rio de Janeiro são os primeiros lançamentos do escritor por uma nova editora, a Agir, depois de pertencer por mais de 20 anos ao elenco da Companhia das Letras. Eles chegam às livrarias neste mês – quem compra o romance ganha o volume com o conto, ilustrado com fotos feitas por José Alberto Fonseca, o Zeca, filho do autor. O lançamento motiva a reportagem biográfica que BRAVO! publica a seguir, que tem como objetivo iluminar o universo de José Rubem e, assim, aprofundar o entendimento de sua obra.

“Rubem Fonseca é provavelmente o escritor vivo mais estudado fora do Brasil. Tomando-se a literatura brasileira de todos os tempos, talvez ele só perca para Clarice Lispector. Ele é hoje considerado um mestre da ficção policial em escala mundial, e seus livros fazem parte do cânone da literatura latino-americana.” Quem afirma é o americano Thomas Waldemer, diretor do Departamento de Estudos Latinos da Universidade de Iowa. Ele próprio é um estudioso da obra de José Rubem. É autor da tese O Efêmero e o Histórico em Agosto, uma análise do romance que tem como pano de fundo o suicídio do presidente Getúlio Vargas em 1954. “É magistral, neste livro, a maneira com que o autor entrelaça a história do país com a história pessoal de um herói anônimo”, diz o professor Waldemer. A carreira internacional de José Rubem inclui prêmios de prestígio como o Juan Rulfo e o Camões, ambos em 2003. Ele também é convidado com frequência para ser jurado de premiações internacionais, como a Casa de las Américas, de Cuba.

Os prêmios pelo mundo e a avaliação da academia americana (o escritor chegou a ser professor-visitante em Stanford, uma das mais prestigiosas universidades dos Estados Unidos) coroam um percurso ímpar na literatura brasileira. José Rubem iniciou sua carreira na contramão. Nos anos 50, os escritores do país continuavam presos ao chamado “projeto modernista”. Eles se preocupavam em criar uma “língua brasileira”, produto condensado das falas coloquiais, como queria o escritor e ensaísta Mário de Andrade. É só pensar em Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Enquanto isso, José Rubem olhava para a literatura de língua inglesa, especialmente a americana, com sua prosa seca e objetiva. Na formação de seu universo, a cultura literária (que, além dos americanos, incorporava outros escritores como o francês Gustave Flaubert) se somou a experiências concretas num longo período formativo – ele só publicou o primeiro volume de contos aos 38 anos e o primeiro romance aos 48. Esse período é marcado por sua atividade como comissário de polícia.

José Rubem entrou para a Academia de Polícia do Rio de Janeiro em 1949, logo depois de se formar em direito. Passou por um vestibular concorridíssimo. A polícia do Rio de Janeiro vivia um período de renovação e tencionava formar quadros de elite. O mentor dessa fase áurea da Academia era o delegado Jorge Pastor de Oliveira, uma figura lendária na corporação. José Rubem se tornou elite da elite, um dos três melhores alunos da classe. Os outros dois eram Ivan Vasques e Mário César da Silva, que no futuro obteriam grande destaque na carreira policial. José Rubem saiu da corporação em meados dos anos 50 para se tornar executivo na iniciativa privada, especializando-se na área de propaganda e relações públicas. Depois disso, se transformou em escritor – e Vasques, Pastor e Mário César viraram inspiração para os tiras a um só tempo cínicos e honestos que pululam em seus livros. Pastor e Vasques chegaram a participar das investigações do suicídio de Getúlio Vargas, reconstituído pelo autor em Agosto. (O período de José Rubem como comissário foi esmiuçado nos anos 90 pelo jornalista Mario Cesar Carvalho numa reportágem da Folha de S.Paulo.)

Pela polícia, José Rubem esteve nos Estados Unidos entre 1953 e 1954. “Era para ser apenas um curso sobre atividade policial na Universidade de Nova York, mas na verdade ia muito além disso. Os americanos estavam interessados em divulgar sua ideologia e modo de vida, e isso era o cerne do programa”, relembra o delegado Ivan Vasques, hoje aposentado, que viajou na mesma turma com José Rubem e mais oito policiais. Foram seis meses em Nova York e depois mais três viajando pelos Estados Unidos. Os tiras do programa chegaram a participar de uma festa na casa do cônsul brasileiro em Los Angeles. Até Carmen Miranda estava na lista de convidados. Durante a viagem, José Rubem aperfeiçoou seu inglês e fez contatos para uma segunda temporada nos Estados Unidos. De acordo com a professora Aline Andrade Pereira, da Universidade Federal Fluminense, que pesquisou esse período da vida do escritor, José Rubem teria estudado administração em dois cursos de verão consecutivos, na Universidade de Boston, nos anos de 1956 e 1957. Depois de voltar, continuou acompanhando a vida americana através de uma assinatura da revista Time.

Segundo seus amigos, José Rubem se apaixonou pelos Estados Unidos. Quando falavam mal do país de John Kennedy – algo que era moda no Brasil dos anos 50 e 60 -, José Rubem cortava na hora: “Deixa de ser ignorante”. De acordo com o jornalista Sérgio Augusto, que convive com o escritor desde o início dos anos 60, as conversas literárias entre ambos giravam em torno de autores como Philip Roth, Norman Mailer e Saul Bellow. Suas leituras abarcavam também uma vertente mais pop. “Ele descobriu na América os policiais de Raymond Chandler e Dashiell Hammett”, diz o escritor Cícero Sandroni, presidente da Academia Brasileira de Letras e amigo de José Rubem. “Influenciado por esses autores, instituiu uma revolução na literatura brasileira, que consistia em escrever em ordem direta. Parte disso vem do pulp fiction, da literatura popular. Sua obra nos ajudou a deixar de lado a herança ibérica e nos aproximou dos Estados Unidos.”

Outra influência importante na formação do universo de José Rubem é o cinema. Ele costuma dizer, meio de brincadeira, que optou pela literatura porque ganhou uma máquina de escrever quando era adolescente. Se o presente fosse uma câmera, seria cineasta. Gosta de acompanhar de perto as adaptações literárias de seus livros. Foi assim em Bufo & Spallanzani (2001), de Flávio Tambellini. Ele fez questão de participar do roteiro e das filmagens. “José Rubem contraria o clichê do autor excessivamente apegado à sua obra”, diz Tambellini. “É o primeiro a mudar a feição de um personagem, ou mesmo fundir vários num só, quando a trama do filme assim exige.” José Rubem trabalhou no roteiro de Bufo & Spallanzani junto com a escritora Patrícia Melo e o próprio Tambellini. Mais tarde, em 2003, ajudou a escrever o roteiro de O Homem do Ano, baseado no livro O Matador, de Patrícia Melo. Acompanhou de perto as filmagens, por puro prazer. José Rubem chegou a aparecer em locações longínquas, como uma cena rodada em Nilópolis, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. No set de filmagem, costumava dizer: “Eu adoraria fazer isso, mas é uma trabalheira…”.

“O romance Agosto é o último gesto de servidão de Rubem Fonseca a seu amo Gallotti, o testa de ferro da Light.” A frase, proferida pelo antropólogo Darcy Ribeiro nos anos 90, referindo-se ao presidente da então maior empresa privada do país, dá a exata medida do patrulhamento ideológico sofrido pelo escritor por causa de suas posições políticas. Num país em que 90% dos intelectuais e escritores se definem como de esquerda, o autor de Agosto sempre se apresentou como um liberal. Como liberal, jogou no lado contrário dos marxistas durante o período mais polarizado da história política brasileira – o início dos anos 60, a época em que João Goulart ocupou a Presidência da República. Essa época é relevante na vida do escritor também por outra razão. Foi em parte graças à convivência com a turma que se opunha ao presidente – e mais tarde ajudaria a articular o golpe militar de 1964 – que José Rubem publicou seu primeiro livro de contos, Os Prisioneiros.

José Rubem era bastante próximo de dois ícones da direita daquela época. O primeiro é o já citado Antonio Gallotti, que o jornalista Elio Gaspari aponta em seu livro A Ditadura Derrotada como um dos executivos mais influentes do país. Gallotti era presidente da Light, a maior empresa privada do Brasil na época. Assim o define Gaspari: “um homem hábil em manipular a conexão do Estado com seus negócios, anticomunista, articulador de seus pares e assustado com a influência esquerdista no governo Goulart”. Tinha muitos críticos, mas também os que o consideravam um visionário, por perceber a necessidade do investimento externo para o crescimento do país. “Gallotti era um homem excepcional, que entendeu como ninguém a questão do capital estrangeiro no Brasil”, diz o advogado Candido Mendes, da Academia Brasileira de Letras, que nos anos 50 foi aluno de Gallotti na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – e que, mais tarde, dividiria uma sala na Light com um ex-policial que debutava na carreira de executivo: José Rubem Fonseca.

Gallotti foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipês, organismo fundado em 1962 com o objetivo de disseminar um pensamento liberal e antimarxista. José Rubem, que trabalhava no departamento de relações públicas da Light, foi recrutado para fazer parte do organismo. Ele assinou a ata de fundação e ocupou cargos de chefia no Ipês durante o período em que este existiu, até 1971, contribuindo inclusive financeiramente com a instituição. Quem afirma é a professora Aline Andrade Pereira, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense e autora da tese O Verdadeiro Mandrake: Rubem Fonseca e Sua Onipresença Invisível (1962-1989). “Rubem Fonseca participava de todas as reuniões. Há transcrições de opiniões dele, com assinatura na ata, em geral no cargo de ‘secretário’. Não encontrei provas definitivas, mas várias pessoas afirmaram que ele era o autor dos roteiros dos filmes publicitários do Ipês”. Ela se refere a comerciais que exaltavam a efervescência da iniciativa privada no Brasil dos anos 60, dirigidos por Jean Manzon. Muitos deles estão disponíveis no site que reúne o acervo do fotógrafo e cineasta: http://www.acervojeanmanzon.com.br (José Rubem refuta a afirmação de que esteve no Ipês até 1971. Diz que saiu da instituição em 31 de março de 1964, data do golpe militar).

Foi no Ipês que José Rubem conheceu outro ícone da direita da época: o general Golbery do Couto e Silva. “Quando trabalhou no Ipês, ele frequentou muito o general Golbery. E eu me lembro do fascínio do general Golbery com o José Rubem”, diz Candido Mendes. “Acima de tudo, Golbery admirava o José Rubem por sua capacidade, sua implacabilidade de raciocínio.” Foi no gabinete de Golbery que José Rubem viria a conhecer o seu primeiro editor, o baiano Gumercindo Rocha Dorea. Gumercindo, ex-militante integralista, dirigia a editora GRD e se aproximou de Golbery ao saber que o Ipês apoiava a publicação de livros que fossem ideologicamente afinados com o Instituto.

Gumercindo soube pela jornalista Fernanda Gurjan, então estagiária do Ipês, que José Rubem era contista nas horas vagas. Mais do que indicar o amigo, Fernanda deu ao editor baiano os originais de alguns de seus contos, que mantinha numa gaveta. Gumercindo tinha gosto especial por lançar novos autores – Nélida Piñon e Dinah Silveira de Queiroz também haviam publicado seus primeiros livros pela GRD. Encantou-se de cara com a prosa enxuta de José Rubem. Depois de alguma relutância, José Rubem topou a publicação com uma condição: que o capista fosse seu filho, José Alberto Fonseca, o Zeca. “Só dias mais tarde soube que Zeca tinha apenas 5 anos de idade, mas a capa ficou linda”, diz Gumercindo, que guarda até hoje a primeira edição de Os Prisioneiros, lançado em 1963. José Rubem também publicaria pela GRD seu segundo livro, A Coleira do Cão, de 1965 – volume que até hoje muitos críticos consideram sua obra-prima na área da narrativa curta.

Nos anos 90, José Rubem publicou um artigo comentando de forma sucinta sua participação no Ipês. Segundo ele, foi uma decorrência de sua atividade empresarial, como executivo da Light. José Rubem nega ter colaborado com a ditadura depois que esta se estabeleceu. Não há por que duvidar dele, até porque o escritor seria mais tarde vítima da censura. Em 1975, seu livro de contos Feliz Ano Novo foi tirado de circulação, numa leva que incluiu também Araceli, Meu Amor, de José Louzeiro, e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Segundo o escritor Cícero Sandroni, o então ministro da Justiça Armando Falcão tinha um exemplar de Feliz Ano Novo em sua mesa. E costumava lamentar: “E esse autor estava do nosso lado!”. Quando a Light foi estatizada pelos militares, ele foi um dos primeiros a perder o emprego. José Rubem se opôs à ditadura e ao endurecimento do regime, mas continuou amigo de seus amigos pré-golpe. Em 1979, o escritor foi indicado por Antonio Gallotti para participar da administração municipal do Rio de Janeiro, durante a gestão do prefeito biônico Israel Klabin, outro ex-integrante do Ipês. Após alguma relutância, acabou aceitando presidir a Fundação Rio Arte, embrião da atual Secretaria Municipal de Cultura.

Qual a relevância da atividade política de José Rubem para a sua obra, além de lhe fornecer contatos para publicar o primeiro livro? Pode-se dizer que as crenças políticas do escritor evitaram que sua ficção sofresse, como a de tantos autores, a influência do marxismo – e isso pode ter sido bom. Seus personagens vivem numa realidade mais complexa do que aquela de que o conceito de “luta de classes” tenta dar conta. O tempo passou, o Muro de Berlim caiu e José Rubem – como se verá adiante – presenciou sua demolição. Desde cedo em sua carreira, no entanto, o escritor já agia como se ele não existisse.

José Rubem não bebe mais nem fuma charutos, mas continua fiel às suas outras paixões. Entre elas, os exercícios físicos, os computadores e as mulheres. Ele não tem mais energia para o vôlei de praia – “lembro de meu pai cravando cortadas na areia”, diz o filho José Henrique Fonseca -, mas continua gostando das longas caminhadas pelas ruas do Leblon. Segundo o amigo Alberto Venancio Filho, José Rubem acorda todos os dias por volta das 5h da manhã para andar no calçadão. Depois do exercício checa os e-mails. José Rubem sempre foi fanático por computadores. O cineasta Flávio Tambellini diz que decidiu filmar Bufo & Spallanzani porque seria o primeiro romance brasileiro em que aparecem essas máquinas. José Rubem costuma disputar com o amigo João Ubaldo Ribeiro, outro geek assumido, quem tem o melhor equipamento. Segundo João Ubaldo, o autor de Agosto tem vantagem, mas ele está diminuindo a diferença…

José Rubem permanece também fiel às mulheres. Segundo seus amigos, mantém uma vida amorosa ativa. A essa altura da vida, rótulos como “noiva” ou “namorada” não fazem mais sentido, mas o escritor continua cultivando amizades femininas. “Ele não tem séquito de admiradores, só admiradoras”, diz o poeta Geraldo Carneiro, que adaptou para a TV e para o teatro o conto Lúcia McCartney. Há certo folclore aí. José Rubem é famoso por aconselhar autoras em início de carreira, mas lê os originais de escritores homens também, dando sugestões. “José Rubem é uma das pessoas mais generosas que conheço”, diz a escritora Patrícia Melo, dona de uma carreira literária vitoriosa em que se destaca o romance O Matador, traduzido para várias línguas. Ela transformou José Rubem em personagem de seu livro Jonas, o Copromanta – no qual brinca com o assédio que o escritor sofre.

Os encontros entre homens e mulheres nos livros de José Rubem costumam ter alta voltagem erótica. Os tipos masculinos identificados como seus alter egos fazem muito sexo, mas raramente se apaixonam. José Joaquim Kibir, o personagem central do livro O Seminarista, é exceção. Matador de aluguel, ele “pendura o revólver” e tenta recomeçar a vida sob nova identidade. Em sua segunda encarnação, Kibir se apaixona por uma moça de origem alemã chamada Kirsten. Há cenas de sexo no livro – caso contrário, José Rubem não seria José Rubem. Mas há, principalmente, momentos românticos – o casal central lendo poesia na cama, cozinhando ou dormindo abraçado. “Muitas pessoas devem achar estapafúrdio um sujeito que matou por encomenda ser dominado por sentimentos dessa natureza”, diz o personagem no livro. “Para falar a verdade eu também me considerava incapaz de uma emoção tão profunda, sentia tesão pelas mulheres, e admiração, mas paixão nunca sentira antes. Na verdade, amor est vitae essentia, o amor é a essência da vida.” Tal tom enamorado é raro na literatura de José Rubem.

Seria Kirsten uma homenagem de José Rubem a Théa Maud Komel, a mãe de seus três filhos? Talvez nem o próprio escritor tenha consciência disso, mas existem identidades entre as duas personagens. Théa, como Kirsten, era de família originária do Leste Europeu – mais precisamente, da Eslovênia. Kirsten e Théa têm a mesma profissão, a de tradutora. No livro, Kirsten verte para o alemão clássicos da literatura brasileira. Na vida real, Théa traduzia livros do inglês para o português. Na descrição da filha, a psicanalista e escritora Bia Corrêa do Lago, Théa era alegre e animada, gostava de gente e tinha um riso fácil, outras características em comum com a personagem. Théa morreu em 1997, aos 68 anos, de uma doença degenerativa. Entre o diagnóstico e a morte decorreram apenas nove meses. Segundo os amigos, o processo foi extremamente doloroso, devastador mesmo, para o autor.

A mulher com quem José Rubem foi casado a vida toda é fundamental para sua carreira como escritor. Foi ela que o incentivou a, já perto dos 50 anos, diminuir suas atividades profissionais e a se dedicar inteiramente à literatura. Mais do que isso: ela “protegia” o autor da vida familiar, de forma que ele pudesse se concentrar em seu trabalho. Não permitia que os três filhos interrompessem José Rubem quando ele estava escrevendo no escritório. “Eu, como caçula temporão, deveria ser infernalmente chato. Minha mãe preservava meu pai da presença daquele moleque”, diz o filho José Henrique. “Só adulto, quando pude trabalhar com ele nas adaptações de O Homem do Ano e Agosto, pude ter acesso a esse pai que ficava isolado escrevendo.” “Ele tinha muito pouco tempo e trabalhava de noite”, diz o filho Zeca. “Alguém era privado desse tempo em que ele ficava escrevendo, e esse alguém era a família. Meu pai tinha pouco tempo para ser um pai normal, de levar a gente para os lugares.”

Hoje José Rubem não precisa mais se isolar para escrever. Ele mora sozinho num apartamento no bairro carioca do Leblon. Um apartamento que, aos poucos, vem se transformando numa biblioteca. O escritor costuma dizer aos amigos que lê um livro por dia, e os livros vão se acumulando. De tempos em tempos, José Rubem tem que comprar uma estante nova. O filho José Henrique calcula que haja lá cerca de 8 mil livros. “O apartamento está todo tomado de estantes, falta apenas a cozinha”, diz ele.

José Rubem é o mais influente dos escritores brasileiros da atualidade, mas, por sua reclusão, nunca teve um rosto conhecido. Dois episódios anedóticos, um remoto e um recente, ilustram isso. José Rubem estava em Berlim em 1989, época da queda do muro. Era bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico. No dia em que o muro caiu, José Rubem foi testemunhar o momento histórico e acabou sendo interpelado pelo jornalista Luiz Carlos Azenha, então correspondente da TV Manchete. Ao ouvir o escritor falando português com sua tradutora, Ute Hermanns, o repórter o interpelou, sem saber que se tratava do famoso autor brasileiro. Incógnito, José Rubem deu uma de suas poucas entrevistas para a televisão brasileira. (Outro momento histórico que o escritor presenciou, segundo relata numa crônica, foi a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950. Ele estava na arquibancada do Maracanã.) O segundo episódio é mais prosaico. Recentemente, José Rubem caminhava pelas ruas do Leblon com o filho mais novo, José Henrique, e a nora, a atriz Cláudia Abreu. O trio foi flagrado por um paparazzo em busca de um instantâneo da estrela da TV Globo. Na legenda da foto, José Rubem seria posteriormente creditado como pai de Cláudia.

Depois de ver a foto publicada na capa de BRAVO! (e outras imagens de divulgação feitas especialmente para o lançamento do novo romance), o leitor desta reportagem não incorrerá no erro de Azenha e do paparazzo. Não é difícil cruzar com José Rubem nas ruas do Rio de Janeiro. Ele frequenta assiduamente vários lugares no bairro carioca do Leblon. Entre eles, a praça Antero de Quental, perto do campo de treinos do Flamengo. José Rubem resolveu “adotar” um dos ipês da praça. Ele paga um jardineiro para cuidar da planta. José Rubem adora árvores, como o personagem Epifânio, do conto A Arte de Andar pelas Ruas do Rio de Janeiro, que abraçava os troncos do Campo de Santana. Na crônica Desventuras de um Dendrólatra, José Rubem cita o escritor polonês Czeslaw Milosz, que num poema chamado Anelo diz querer ser uma árvore para crescer sem ferir ninguém. José Rubem é uma pessoa prática, liberal em política e agnóstico em religião, e não assinaria embaixo de frases pretensamente edificantes como esta – mas alguns de seus amigos dizem que o verso de Milosz bem poderia ser o seu lema, se o escritor fosse o tipo de pessoa que adota um.

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