Rabo de foguete – Os anos de exílio, de Ferreira Gullar

Texto publicado por José Mário Silva na revista Ler e reproduzido em seu blog Bibliotecário de Babel:

Rabo de Foguete – Os Anos do Exílio
Autor: Ferreira Gullar
Editora: Verbo
N.º de páginas: 284
ISBN: 978-972-22-3008-7
Ano de publicação: 2010

O que mais surpreende em Rabo de Foguete, magnífico resumo dos anos em que Ferreira Gullar viveu fora do Brasil, para escapar à perseguição do regime militar, é a sua estrutura fugidia, a simplicidade da prosa e a fluidez narrativa. Sendo um poeta, Gullar não faz poesia nem cede à tentação do lirismo (ou cede apenas em pequenos intermezzi sentimentais, compreensíveis quando estão em causa extremos de felicidade ou angústia).
À medida que se sucedem os capítulos, muito curtos e no osso, acompanhamos o autor numa rememoração que vai avançando aos solavancos, sem pretensões de rigor absoluto, fazendo sobressair certos ângulos das experiências vividas que não serão necessariamente os mais importantes, mas aqueles que deixaram marcas fundas na consciência do escritor (não por acaso, as relações amorosas e as amizades sobrepõem-se claramente às análises sociais ou às reflexões políticas sobre os países por onde foi passando). Dito isto, a escrita despida mas extraordinariamente evocativa de Gullar consegue transmitir-nos, com acutilância, o estado de permanente alerta do exilado, o seu desamparo e solidão, o progressivo alheamento em relação ao que chamamos normalidade e o proverbial instinto de fuga, que é antes do mais um instinto de sobrevivência.
O livro começa com um telefonema no início dos anos 70. Do outro lado da linha, más notícias. Sujeito a tortura, um camarada do Partido Comunista Brasileiro denunciara outros camaradas, entre os quais Gullar, que contra a sua vontade fazia parte da «direcção estadual» do PCB e se vê assim forçado a entrar na clandestinidade. Saltando entre apartamentos de amigos, longe da família, cumpre à risca as estratégias de dissimulação mas acaba por se cansar do «jogo de esconde-esconde».
Quando o cerco aperta, parte para Moscovo, onde fará um curso de seis meses no Instituto Marxista-Leninista. Sob uma identidade falsa (Cláudio), entusiasma-se mais com os seus vários namoricos e aventuras sexuais do que com a doutrinação pesada da escola soviética. Aliás, ao contrário dos outros estrangeiros, ele nunca se coíbe de dizer o que pensa, mesmo se os seus comentários não correspondem ao que os anfitriões desejariam ouvir, o que provoca toda a sorte de embaraços, mal-entendidos e tensões. A estadia num hotel de cinco andares sem água canalizada, numa terrinha perdida nos Urais, funciona então como metáfora de uma sociedade absurda.
O desencanto ideológico acentua-se no Chile, onde chega em Maio de 1973. Em vez de atribuir a queda de Allende, uns meses mais tarde, apenas à ação das forças de direita (apoiadas pelos EUA), Gullar culpa igualmente o radicalismo das esquerdas, para ele um factor que alienou a base de apoio popular do governo socialista. Após o golpe de Pinochet, volta a perseguição, volta o medo, volta a necessidade da fuga, primeiro para o Peru (onde se reúne com a família), depois para a Argentina, onde vive com aflição as crises de esquizofrenia do filho mais velho, que por vezes desaparece meses a fio. As páginas dedicadas à busca de Paulo estão entre as mais comoventes do livro.
Mas o melhor está guardado para o fim: a narração da génese do Poema Sujo, a sua obra-prima. «Imaginei que o melhor caminho para realizar o poema era vomitar de uma só vez, sem ordem lógica ou sintática, todo o meu passado, tudo o que vivera, como homem e como escritor.» É o que faz, para assombro dos amigos que o ouvem ler, em Buenos Aires, aquelas cem páginas vertiginosas. Entre eles, Vinicius de Moraes, companheiro que grava o poema e o põe a circular no Brasil. A onda de admiração gerada contribuirá, mais tarde, para o regresso de Gullar à pátria, em 1977. E quando se livra dos interrogatórios da polícia no Rio, quando se sente novamente livre, o poeta fecha o capítulo do exílio de uma forma muito brasileira: gozando «uma manhã inteira de praia carioca».

Avaliação: 8/10

[Texto publicado no n.º 98 da revista Ler]

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