O professor vai à delegacia

Navio francês com escravos para venda no Rio de Janeiro

O professor foi assaltado, às 20h30, quando voltava para casa. Dois rapazotes o abordaram. O mais velho sacou uma pistola Falcon, pôs contra sua cabeça e disse: “Passa tudo se não quiser levar bala.” O professor entregou tudo, sem qualquer resistência e com uma calma inexplicável. Suas mãos e pernas nem tremiam. “Vai agora por aqui, se não mato você.” O professor foi, obediente como de costume. Não é homem de sobressaltos.

Comunicou o ocorrido ao policial da viatura estacionada não muito longe do assalto. O policial anotou as informações, mas recomendou que fosse à delegacia prestar queixa.

Na delegacia, o policial de plantão tomou seus dados e fez perguntas. A certa altura, comentou: “Eu faço perguntas específicas, você me responde, mas depois começa a acrescentar elementos que não são específicos da minha pergunta. É professor de quê?” E o professor: “De literatura. Policial, as narrativas precisam ser criadas. Talvez interessem mais a mim do que ao senhor. É uma pena. Bom seria que interessassem aos dois.”

Em seguida, o policial entregou ao professor álbuns de reconhecimento, com centenas de fotografias de assaltantes da região. O professor conseguia ver apenas os olhos dos assaltantes: tristes, de uma tristeza profunda; angustiados, desamparados, intranquilos. Depois o professor reviu as fotos, observando apenas seus rostos. Quase todos eram negros e magros, com muitas cicatrizes na pele. Alguns ele reconheceu da rua – afinal, vivia há 12 anos naquele bairro. Nesses casos, lia atentamente seus nomes. Desse modo seriam um pouco menos estranhos.

Até que o professor parou de folhear e contemplou a foto de um homem que parecia um índio apache, com cabelos lisos e longos, um lenço de algodão na cabeça, um olhar vibrante. Mais do que assaltante, era um Deus do Texas. Única exceção dos álbuns.

“Reconheceu alguém?”, perguntou o policial. “Reconheci todos. São todos humanos. É o único reconhecimento possível. Muito obrigado e bom trabalho.”

O professor entrou no táxi e pensou em Homero: a necessidade de contar a história dos vencidos. A raiva contra os assaltantes havia passado. A questão agora era outra.

11 Comentários

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11 Respostas para “O professor vai à delegacia

  1. Cecilia Boal

    que lindo Eduardo!!!

    Cecilia T Boal 21-9765-8720 21-2511-2924

  2. Incrível relato. De fato o que significa reconhecer uma foto de suspeito de crime policial? O que são essas fotos em forma de catálogos, quem é essa massa anônima, a quem o professor humanista quer dar nomes. O que mais impressiona ao professor é a tristeza humana demasiadamente humana dos olhos, dos rostos, e suas cicatrizes, que são marcas da história escrita na figura de cada um. A história dos vencidos já está de certo modo escrita ali. O professor, bom leitor, reconhece essa escrita. A raiva provavelmente passou naquele momento se não antes, durante o interrogatório a que ele é submetido, que produz “narrativas”, que desinteressam o policial. A “literatura” que o professor professa, e que ele produz como modo de lidar com a vida e o incidente pelo qual havia passado, não interessa ao policial. E saber que o policial em toda a sua aparente eficácia nunca prenderá esse pequeno assaltante e muitos outros, que a atividade que ele exerce ele o faz de modo absolutamente ineficaz, porque a questão criminal no Brasil é simplesmente mal colocada, e não se coloca os verdadeiros problemas. A pergunta, seria ela literária, e então o que faz o policial, em seu plantão noturno, talvez entediado em seu serviço, que serviço ele presta e para quem? Seria para nós que pagamos o seu salário? Certamente não. Então para quem? Talvez ele seja tão inútil quanto acha que é o professor. Que literatura professa o policial?
    Homero escritor da história benjaminiana dos vencidos e não dos vencedores. O filósofo Castoriadis concorda com o professor, embora os helenistas não concordem com ele. O personagem mais importante da Ilíada não é Aquiles, mas Príamo, o rei de Tróia que perdeu a guerra, e que chora o filho morto. É o seu luto pela perda do filho, Heitor, o tema maior da Ilíada. Talvez todos os rostos das fotos irreconhecíveis que o professor, um humanista, não reconheceu, tivessem um único nome, Príamo ou Heitor. Príamo é sem dúvida também o nome do policial de plantão, embora ele o negue: ele perdeu a guerra, a sua guerra, e não sabe. Cabe à literatura fazer com que ele acorde para a realidade.

  3. Carlos Alvarenga

    Mas que grata surpresa este blogue!

  4. Pingback: “Que literatura professa o policial?” | Autores e Livros

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  6. Um texto muito bem escrito com um grande fundo de Altruísmo e Bondade!
    Parabéns ao Autor! Quero ler mais coisas suas…

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