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“Morre Gabriel García Márquez” – Antonio Gonçalves Filho

Publicado no site do Estadão:

Morreu nesta quinta-feira, 17, aos 86 anos, o escritor colombiano Gabriel García Marquez, ganhador do prêmio Nobel de literatura de 1982. García Márquez viveu na Cidade do México por mais de 30 anos e enfrentava sérios problemas de memória, embora a família, com exceção do irmão Jaime García Márquez, evitasse publicamente vincular seus problemas de saúde ao mal de Alzheimer. A última aparição pública de García Márquez, ou Gabo, como era conhecido dos amigos íntimos, foi em seu aniversário, em 6 de março. Ele sorriu para os jornalistas, mas não falou com a imprensa.

Figura mais popular da literatura hispânica desde Cervantes, García Márquez ficou conhecido como um dos pais do realismo mágico, gênero literário desenvolvido nos anos 1960 e 1970 e caracterizado pela inclusão de elementos fantásticos no cotidiano ordinário.

De todos os seus livros, cujas vendas alcançaram mais de 50 milhões de cópias, o mais lido certamente é Cem Anos de Solidão (1967), épico sobre uma família fictícia, Buendía, numa cidade imaginária, Macondo. Nele, o escritor mescla lembranças pessoais a acontecimentos extraordinários, antevendo o próprio drama pessoal que enfrentaria na velhice (uma cidade inteira perde a memória no livro).

Além de Cem Anos de Solidão, ele é autor de O Outono do Patriarca, Ninguém Escreve ao Coronel, Crônica de Uma Morte Anunciada e O Amor nos Tempos do Cólera, seus romances mais populares. Gabo também é associado aos nomes mais representativos do chamado “new journalism”, corrente do jornalismo marcada pela liberdade com que são retratados fatos reais, à qual pertence o norte-americano Tom Wolfe.

Aos 20 anos, Gabo mudou-se para Bogotá, onde estudou Direito e Ciências Políticas sem, no entanto, obter o diploma, começando a trabalhar um ano depois como repórter do jornal El Heraldo, em Barranquilla. Ele também foi crítico do El Espectador, antes de partir para a Europa, em 1961, como correspondente estrangeiro. Sua obra jornalística completa foi publicada no Brasil pela editora Record.

Novo gênio. No El Espectador, publicou seu primeiro conto, em 1947, La Tercera Resignación, sendo anunciado pelo editor do suplemento literário do jornal, Eduardo Zalamea Borda, como o “novo gênio da literatura colombiana”. Foi exatamente nessa época que García Márquez se uniu a um grupo de estudos de Barranquilla, que se reunia diariamente na livraria de um grande intelectual, Ramón Vinyes.

Gabo assinava uma coluna no El Heraldo e discutia literatura com os colegas, em especial as obras de Albert Camus, John dos Passos e William Faulkner, esse último a grande influência literária do escritor, assumida na autobiografia, Viver para Contar, e mesmo antes, no discurso que fez ao receber o Nobel, em 1982.

A década de 1940 foi marcada pela boemia e pouco dinheiro. Ele morava em pensões baratas de bairros pouco recomendáveis. Em 1950, quando escrevia seu primeiro romance, provisoriamente chamado La Casa, voltou ao povoado onde viveu os primeiros anos, Aracataca, para vender a casa dos avós, com quem passou parte da infância. Lá, teve uma espécie de epifania, ao perceber que o povoado sonolento e empoeirado que conheceu quando criança não guardava semelhanças com o que via. Mudou o título do romance e criou, então, a cidade fictícia de Macondo, da mesma forma que Faulkner inventara o condado de Yoknapatawpha, microcosmo que representa uma alegoria do profundo Mississipi.

Os anos 1950 foram difíceis para Gabo. Como correspondente de El Espectador na Europa, recebia atrasado e passou por sérias dificuldades. Já havia escrito Ninguém Escreve ao Coronel (1958) quando sua situação ficou parecida com a do oficial do livro, à espera de uma carta que finalmente garantisse seu sustento até o fim da vida.

Já casado e com dois filhos, nos anos 1960, errou pelo sul dos EUA, mas não conseguiu visto de permanência por ser filiado ao Partido Comunista. Ele só retornou aos EUA em 1971, para receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Columbia.

Fiel ao comunismo e aliado dos cubanos, criou em Cuba um curso de cinema pelo qual passaram alguns realizadores brasileiros. Ele mesmo teve experiências na área, assinando a adaptação cinematográfica de O Galo de Ouro, de Juan Rulfo, feita em 1963 em parceria com Carlos Fuentes. Quatro anos depois, com Cem Anos de Solidão, ele conquistaria o mundo literário, recebendo do poeta chileno Pablo Neruda seu maior elogio: “É o melhor romance escrito em castelhano desde Cervantes”. Seu último livro foi publicado em 2004, Memória de Minhas Putas Tristes

 

OBRA PUBLICADA NO BRASIL

1955 – O Enterro do Diabo: A Revoada
1961 – Ninguém Escreve ao Coronel; A Má Hora; O Veneno da Madrugada
1962 – Os Funerais da Mamãe Grande
1967 – Cem Anos de Solidão; Isabel Vendo Chover em Macondo
1970 – Relato de um Náufrago
1972 – A Incrível e Triste História de Cândida Eréndira e sua Avó Desalmada; Olhos de Cão Azul
1975 – O Outono do Patriarca
1981 – Crônica de uma Morte Anunciada
1985 – O Amor nos Tempos do Cólera
1986 – A Aventura de Miguel Littín; Clandestino no Chile
1989 – O General em Seu Labirinto
1992 – Doze Contos Peregrinos
1994 – Do Amor e Outros Demônios
1996 – Notícia de um Sequestro; O Verão Feliz da Senhora Forbes
2002 – Viver Para Contar
2004 – Memória de Minhas Putas Tristes

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Obras de Lucien Freud no MASP

Matéria de Antonio Gonçalves Filho publicada no Estadão:

Em menos de duas semanas, a partir do dia 27, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) recebe uma exposição cujo título define o principal interesse do neto do criador da psicanálise, Lucian Freud – Corpos e Rostos. De fato, o que o avô Sigmund Freud fez pela mente, o neto Lucian fez pelo corpo, colocando-o literalmente numa posição desconfortável para examinar o que se passava, afinal, em seu interior. Inicialmente identificado como expressionista, rótulo que nunca aceitou, Lucian Freud (1922- 2011) passou a ser associado, em 1976, ao grupo figurativo batizado pelo pop Ronald Kitaj (1932-2007) como a “Escola de Londres”, que abrigou pintores tão diferentes entre si como seus amigos Francis Bacon, Frank Auerbach e Leon Kossoff.

Kitaj, assim como Freud, era descendente de judeus, o que fica claro nessa tentativa de abrigar numa mesma escola artistas que ele imaginava como recriadores da mítica figura do golem, um ser ligado à tradição mística do judaísmo. Freud, que partiu da Alemanha aos 10 anos, em 1932, fugindo do nazismo com a família, talvez tivesse outra coisa em mente – e não propriamente um Frankenstein informe criado a partir do barro para espantar inimigos. Kitaj exagerou, mas não ao associar o nome de Freud ao de Francis Bacon, seu mais perfeito interlocutor.

Assim como Bacon reduziu o corpo humano a uma massa disforme – carne de açougue mesmo -, Lucian Freud fez dele pouco mais que uma substância ainda sem vida à espera de que a pintura o animasse. Não por outra razão exigia de seus modelos – fosse ele o fotógrafo David Dawson, seu assistente, ou Elizabeth II, a rainha da Inglaterra – dedicação absoluta enquanto posavam para retratos em que seus corpos acumulam as marcas do tempo, como se retrocedessem à condição antropomórfica do monstruoso golem. Em outras palavras, ao puro barro humano. Sua última pintura, inacabada, Portrait of The Hound (2011), mostra Dawson ao lado de Eli, o cão pertencente ao artista, como figuras amalgamadas, ambos sujeitos à degradação física – tema de todos os seus retratos, em que buscava a verdade, e não a aparência.

Curador da exposição, que segue depois do Masp para o Paço Imperial, no Rio, em novembro, Richard Riley classifica a mostra como uma completa radiografia da obra de Freud, mesmo tendo apenas seis de suas pinturas de diferentes períodos – a atividade do artista atravessou nada menos do que seis décadas. O pintor não foi prolífico, mas a mostra reúne ao todo 78 peças, das quais 44 gravuras (a maior parte do Museu de Arte Contemporânea de Caracas), um desenho (autorretrato de juventude) e 28 fotografias do ateliê de Freud por seu assistente David Dawson, um dos dois únicos amigos (o outro foi Cecil Beaton) autorizados a registrar seu cotidiano no estúdio londrino de Notting Hill, herdado por Dawson.

Dawson, também pintor, conheceu Lucian Freud em 1990, um ano após formar-se no Royal College of Art. “Certo dia ele imaginou um grande retrato e convidou-me para posar com seu cachorro Pluto no sofá”, conta. Isso foi em 1997. A tela tem um título ambíguo, Manhã Ensolarada – Oito Pernas. Não está na mostra, mas o título insinua que Dawson também tinha quatro pernas, como Pluto, considerando os braços como membros inferiores dos hominídeos das cavernas. É essa redução à condição ancestral, de quadrúpede, que tanto incomoda nos nus de Freud. Eles escancaram a bizarrice de corpos pouco harmônicos, para dizer o mínimo.

Riley adianta que estará na mostra também o polêmico retrato da jovem nua deitada na cama ao lado de um ovo colocado sobre uma mesa lateral, assim como a figura de um pássaro morto e um autorretrato do artista em crayon. “O foco da exposição é a gravura, pois Freud foi, além de pintor, um desenhista meticuloso.” E metódico. Não passou um dia sem ir ao ateliê, exigindo pontualidade britânica de seus modelos.

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Primeira mostra individual de Cao Guimarães no Itaú

Matéria de Antonio Gonçalves Filho para o Estadão:

Artista consagrado no circuito internacional e representado em coleções como a do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), o mineiro Cao Guimarães, 48, ganha sua primeira individual numa instituição brasileira, o Itaú Cultural, que será aberta hoje para convidados (e amanhã para o público). A mostra Ver É Uma Fábula, com curadoria de Moacir dos Anjos e arquitetura expositiva de Marta Bogéa, reúne seus oito filmes de longa- metragem, além de 21 vídeos e fotografias apresentadas em slide show. A exposição é a maior já feita do artista e ocupa três andares do instituto, onde também será realizado um workshop com Cao e os músicos do Grivo, grupo formado por Marcos Moreira Marcos e Nelson Soares, que assina as trilhas de quase todos os filmes do realizador.

Inspirado numa passagem do livro Catatau, do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), que fala do poder que tem a fábula de suscitar novas histórias a partir da narrativa original, o título da mostra define a proposta de diálogo de Cao Guimarães com os espectadores de suas obras. Ver imagens produzidas pelo autor filtradas pelo repertório subjetivo corresponde à sensação de refazer o percurso desse cineasta sempre em busca do insólito. Nesse sentido, sua obra mais radical talvez seja mesmo a série Histórias do não Ver, que começou em 1996 e agora vira livro publicado pela Editora Cobogó, lançado durante a exposição.

O artista, na série, submetia-se voluntariamente a um sequestro e, de olhos vendados, era levado a lugares desconhecidos, registrando suas sensações em fotografias cegas que depois formaram uma videoinstalação (em 2001). Cao conta que a série acabou quando ainda estava casado com a também artista mineira Rivane Neuenschwander. Hospedado na casa de um amigo em Madri, acordou sobressaltado com o toque da campainha e, ao abrir a porta, teve um revólver apontado para sua cabeça, levado a uma casa no subúrbio madrilenho, obrigado a ficar nu e fazer inscrições no corpo de uma desconhecida, também nua, como no filme de Peter Greenaway (O Livro de Cabeceira).

Cinema sempre foi a referência máxima de Cao, que tinha um avô fotógrafo e herdou dele o equipamento com os quais fez suas primeiras experiências. “Era um rato de cineclube, via todos os filmes da nouvelle vague francesa e do Tarkovski”, conta, definindo o russo como seu guru. De fato, há nos filmes do cineasta a mesma tentativa de esculpir o tempo com a imagem, como no curta Quarta-Feira de Cinzas (2006), em que a câmera acompanha o movimento de formigas após o carnaval, levando os restos da folia para o formigueiro. “Tenho essa fixação nas vidas minúsculas, o que fica explícito em Nanofania.” Nesse curta, bolhas de sabão explodem enquanto insetos saltam, acompanhados por uma pianola de brinquedo.

Cao, que nunca estudou música, toca ao piano uma composição sua em Concerto para Clorofila (2004), dedicado a explorar o contraste entre luz e sombra na natureza. Mais uma vez, ele penetra num mundo liliputiano de teias de aranha e gotas de orvalho. No mundo dos homens, ele prefere filmar os solitários. É o caso de A Alma do Osso (2004), que acompanha o cotidiano do eremita Dominguinhos, morador numa caverna da montanha (ele morreu num asilo).

Em busca de seres isolados o cineasta acabou encontrando um personagem de Edgar Allan Poe e fez dele o protagonista de seu novo filme, O Homem das Multidões, dirigido em parceria com o pernambucano Marcelo Gomes. No conto de Poe, um londrino do século 19 segue um decrépito flâneur na rua e descobre que ele nunca volta para casa, dirigindo-se sempre a lugares com muita gente. Cao conta que fez dele um mineiro de Belo Horizonte. Quase um doppelgänger, como no premiado Otto – Eu Sou Um Outro (1998), que lhe abriu as portas de Sundance.

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“O lirismo do artista quando jovem”

Entrevista de Antonio Gonçalves Filho com Paul Auster publicada no Estadão:

A poesia do escritor norte-americano Paul Auster é pouco ou nada conhecida entre seus leitores brasileiros. Traduzida por Caetano W. Galindo, ela foi reunida em Todos os Poemas, que chegou às livrarias ontem. O livro, organizado de forma cronológica, cobre o período entre 1970 e 1979 – época em que o romancista integrava um grupo de estudos sobre poesia contemporânea francesa. Acompanhado de uma esclarecedora introdução do cientista político Norman Finkelstein, Todos os Poemas é, a exemplo de muitos dos livros de Auster, autobiográfico por natureza, evocando desde a infância do escritor em New Jersey até sua juventude em Paris, quando, aos 25 anos, ao acompanhar a eleição presidencial na embaixada americana, testemunhou a vitória de Nixon, em 1972, e escreveu um dos seus mais raivosos poemas.

Sobre o livro e as razões de ter trocado a poesia pela prosa, em 1982, Auster, de 66 anos, falou, por telefone, de Nova York, com o Sabático, comentando ainda o volume Here and Now, que reúne sua correspondência com o Nobel sul-africano J.M. Coetzee (o livro chega ao mercado americano na quinta) e outro título seu, Report From the Interior, (que sai no dia 19 de novembro nos EUA).

Sua produção literária vai da poesia à prosa, passando por uma experiência como dramaturgo, da qual você não gosta muito de lembrar (ele é autor da peça em um ato, Hide and Seek, de 1976, duelo verbal entre um homem e uma mulher). O que o fez largar a poesia e se decidir pela prosa?

Essa é uma questão complicada. Quando jovem, escrevia centenas de páginas de prosa, mas nunca ficava satisfeito. Minha ambição era escrever romances, não poesia, projetos ambiciosos, complexos, muito além da minha capacidade. Ficava frustrado com essa minha inabilidade e, aos 22 anos, resolvi me concentrar na poesia, a tal ponto que ela virou obsessão. Veio um momento difícil e, repentinamente, parei de escrever. Quando retomei, já estava escrevendo prosa. Foi uma evolução lenta, natural.

Então, você não escreveu mais poesia?

Não. Tudo o que escrevi no gênero está no livro. Às vezes faço um ou outro poema para homenagear amigos aniversariantes, mas só isso.

Como um admirador da filosofia de Wittgenstein, sua poesia explora os limites da linguagem com curtos, mas densos, poemas, num crescendo que chega a Espaços em Branco (como White Spaces é traduzido no livro), concluído em 1979, quando seu pai morreu. Você se via como um poeta experimental, na época?

Não sei. O lado experimental nunca me disse muito. Tentei, sim, explorar os limites da linguagem, mas não como meta puramente formal. Meus poemas não falam de aviões ou de televisão, ou seja, não estão inseridos no mundo moderno. Eles têm mais a ver com a poesia feita no passado: Emily Dickinson, por exemplo. Tentei cavar e cavei fundo para chegar lá, mas concluí que destruía mais do que conservava. White Spaces representou uma nova possibilidade. Foi o primeiro texto de minha nova vida, a de prosador, que começa com a morte de meu pai (choque que o deixou com a sensação de um relacionamento inacabado, sentimento explorado mais tarde no autobiográfico ‘A Invenção da Solidão’).

Sua estreia em prosa, A Invenção da Solidão, publicado em 1982, fala justamente da morte de seu pai, mas, curiosamente, há um poema em Todos os Poemas, Desaparecimentos (Disappearences, 1975), que soa premonitório, ao tratar da ausência de alguém que respira pela última vez, metaforizando pedras que se juntam para erguer um muro, como se fosse uma sepultura. Você vê ligação entre Desaparecimentos e White Spaces?

Não propriamente. Desaparecimentos era uma maneira de falar do sentimento de solidão do indivíduo no meio urbano, sobre a comunicação numa língua de pedra que abre caminho para outras pedras, erguendo um muro que, no fim, é um amontoado de pedras monstruosas. A primeira parte de A Invenção da Solidão foi escrita após a morte de meu pai, sob forte impacto emocional. Ele morreu subitamente. Era uma pessoa saudável e isso me deixou com várias perguntas sem respostas. Quando comecei a escrever, me dei conta do quanto era difícil falar de uma pessoa ausente e, especialmente, questionei se seria possível traduzir esse sentimento. Durante três anos, de 2008 em diante, troquei cartas com Coetzee (o escritor sul-africano ganhador do Nobel de 2003), que foram reunidas num livro, Here and Now (Aqui e Agora), a ser lançado dia 7 nos EUA. Ao comentar esse sentimento com Coetzee, ele me disse: “Às vezes também me sinto como alguém que deixa a mala no meio do caminho e continua a andar, pois não há a mínima possibilidade de volta a partir desse ponto”.

Voltando à poesia, poderia lembrar outros nomes que lhe parecem caros, como Hölderlin, Leopardi e, claro, Paul Célan, mas aí entramos em território europeu. Poetas norte-americanos contemporâneos, como W. S. Merwin ou William Carlos Williams, não eram referências para você no começo de sua carreira como poeta?

Gosto demais dos poetas que você mencionou e, claro, tanto Merwin como Williams foram importantes para mim, assim como Höelderlin, Leopardi ou Célan, mas gostaria ainda de citar um poeta de quem hoje pouco se fala, George Oppen (que trocou a poesia pelo ativismo político durante os anos da Depressão americana, ganhou o Pulitzer em 1969 e morreu com o mal de Alzheimer, em 1984). Oppen não é um dos “deuses” da poesia contemporânea, mesmo nos EUA, mas é um dos melhores poetas americanos – para mim o melhor -, cuja linguagem teve um efeito extraordinário quando comecei a escrever. No meu livro Invisível, não sei se você lembra, o estudante de letras Adam Walker escreve sobre ele na mesa de um café parisiense.

Ezra Pound sugeriu que, antes de escrever poesia, os poetas deveriam traduzir o máximo de livros para internalizar os “grandes”. Você traduziu um bocado de poesia nos anos 1980. Quais eram os poetas que tentava internalizar nessa época?

Estudei tradução quando era muito jovem, exatamente aos 20 anos, em 1967. Participava de um pequeno grupo de estudos de literatura contemporânea francesa e passava muito tempo traduzindo autores que depois publicaria (ele foi editor de ‘The Randon House Book of Twentieth-Century French Poetry’). Entre eles estão André du Bouchet e Jacques Dupin (o primeiro, morto em 2001 e Dupin, em outubro do ano passado). Por uma trágica coincidência, estou viajando amanhã para Paris (a entrevista foi concedida na quinta-feira) para uma homenagem póstuma a Dupin, esse poeta extraordinário, que foi meu amigo por 45 anos (Dupin, além de poeta, era sócio da histórica Galeria Maeght, em Paris, que representa Miró e Giacometti). Mas, voltando a Pound, ele estava certo ao fazer essa recomendação. Traduzir me ajudou muito a fazer poesia.

Há alguns elementos da natureza que aparecem com frequência em seus poemas, como pedras e folhas, temas recorrentes que, para alguns críticos, revelam uma certa repetição em seus poemas iniciais. Essas pedras eram metáforas ou simplesmente pedras?

Eram pedras mesmo, mas o leitor pode refletir sobre elas do modo que desejar. Para mim, elas têm uma presença real, física. Quando era criança, morava perto de uma pedreira em New Jersey e todos os dias, exatamente às três da tarde, costumava chegar perto para ver o espetáculo da explosão. Nos fins de semana, quando não havia ninguém trabalhando, caminhava com meus pés nus sobre as pedras quebradas – e essa sensação me inspiraria mais tarde a escrever poemas como Quarry (reproduzido nas páginas 278 e 279 de ‘Todos os Poemas’, ‘Pedreira’ fala do desmoronamento da terra sob os pés do poeta, comparando-o à música silenciosa produzida pelo andar sobre as pedras, sem nada ouvir além dos próprios passos).

Identidade, percepção e ausência parecem ser os três temas principais tanto de sua poesia como da prosa, mas, na poesia, o caminho aponta para a tradição moderna, enquanto sua prosa indica outra direção. A pós-modernidade dos anos 1980 teve alguma ressonância nessa sua mudança de registro?

É difícil para mim inserir meu trabalho numa categoria, pois nunca participei de movimentos literários. No entanto, é impossível desconsiderar a atração exercida pela literatura pós-moderna de Thomas Pynchon, Robert Coover ou John Barth (os três nascidos nos anos 1930, uma geração antes daquela a que pertence Auster). No entanto, nunca me senti ligado a eles. Sempre tive mais interesse em contar histórias, o que me obrigou a retomar um certo tipo de literatura do passado, especialmente contos populares. Claro, sempre estive interessado na forma e investiguei novos modos de contar histórias, que é basicamente o que faço em meus livros de prosa- e já são 16, todos eles muito diferentes entre si. Mas não, não tenho um programa ideológico nem posição definida. Penso apenas se essas histórias funcionam ou não.

Há um belo poema em seu livro, Northern Lights (‘Luzes do Norte’, página 246), em que você fala de “palavras que não sobrevivem ao mundo”. Dizê-las, para você, é sumir, o que lembra o credo teatral de Beckett. Que papel ele teve em sua vida?

Beckett é uma referência enorme. Suas questões ainda ressoam em minha literatura, como a dos limites da linguagem. Entre todos, ele é o meu herói. Mas devo ainda mencionar Martin Buber (filósofo judeu de origem austríaca, morto em 1965), cuja filosofia da inter-relação que leva ao diálogo é evocada em referência direta nos meus livros.

Como você recebeu a notícia da decisão de Philip Roth parar de escrever?

Costumamos jantar, às vezes. Gosto muito dele. Acho que Roth só precisa de uma pausa. Não creio que possa parar de escrever.

Qual o tema de seu próximo livro?

Ele é uma sequência de meu livro mais recente, Winter Journal. Chama-se Report from the Interior e sai em novembro. Winter Journal é basicamente sobre o envelhecimento e a questão do corpo. Este é sobre o espírito, o desenvolvimento moral e intelectual de um jovem.

TODOS OS POEMAS
Autor: Paul Auster

Tradução: Caetano W. Galindo
Editora: Companhia das Letras
(352 págs., R$ 49,50)

Poesias de Paul Auster (do livro Todos os Poemas)

Raios (1970)

1.
Raízes agonizam entre vermes – o crivo
Da hora convive no peito de um pardal.
Entre ramo e espira – a palavra
Apequena seu ninho, e a semente, ninada
Por lindes mais simples, não vai confessar.
Apenas o ovo gravita.

2.
Em água – minha ausência em aridez. Uma flor.
Uma flor que define o ar.
No poço mais fundo, teu corpo é estopim.

3.
A casca não basta. Engasta
Lascas redundantes e troca
Pedra por seiva, sangue por eclusa em fuga,
Enquanto a folha se fura, se malha
De ar, e tanto mais, sulcada
Ou envolta, entre lobo e cão,
Por quanto mais há de estacar
A vã vantagem do machado?

4.
Nada rega o caule, a pedra nada perde.
Falar não calçaria a lama,
Logo danças por um calar mais claro.
Cliva a luz a vaga, naufraga, camufla –
O vento discursa, é travado.
Teu nome será deserto.

5.
Picaretas pontuam a pedreira – marcas gastas
Que não alcançaram cifrar a mensagem.
A disputa açulou suas letras,
E as pedras, cingidas de abuso,
Memorizaram a derrota.

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Paulo Leminski: “À vontade entre o erudito e o popular”

Artigo de Antonio Gonçalves Filho publicado no site do Estadão:

A obra poética do curitibano Paulo Leminski (1944-1989), de difícil classificação, já foi associada à herança passadista dos românticos – no sentido de tentar unir vida e arte num só pacote – e à vanguarda concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. No entanto, Leminski segue desafiando os teóricos. Não é nem mainstream nem underground. Trata-se de um poeta genuinamente mestiço, filho de pai polonês e mãe negra, mais conhecido por ter escrito um livro igualmente inclassificável, Catatau (1975), em que René Descartes desembarca em Pernambuco durante o período do Brasil holandês e perde a razão ao tentar entender o País, não sem antes fumar uma erva esquisita. A exemplo de seu Cartésio, o Descartes imaginário de Catatau, Leminski, também um erudito, passou a vida sem entender o Brasil. Bem que tentou, seja como professor ou autor de letras de canções populares, mas principalmente como poeta, como comprova a edição de Toda Poesia, com lançamento previsto para o dia 28.

Descoberto pelo poeta Haroldo de Campos em 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, Leminski era, então, um judoca de 19 anos que escrevia “versos homéricos”, segundo o concretista. Seriam necessários mais 13 anos para que seu primeiro livro aparecesse, Quarenta Clics em Curitiba (1976), que reúne uma pequena parte de sua produção poética inicial ao lado de fotos de Jack Pires. Publicados por uma pequena editora independente paranaense, alguns desses poemas seriam depois reunidos em Caprichos & Relaxos (Editora Brasiliense, 1983), primeiro êxito editorial de Leminski. Nos seis anos seguintes até sua morte, Leminski foi celebrado como um poeta que, embora ligado à contracultura, deixou seu nome inscrito no panteão dos eruditos, ao traduzir textos clássicos de Petrônio (Satyricon) e modernos (Samuel Beckett, James Joyce e Yukio Mishima, entre outros).

Toda essa atividade começou após a publicação de Caprichos & Relaxos. Os anos 1980 mal haviam começado. A Brasiliense era a editora que abarcava a nova geração de autores brasileiros, publicando ainda “malditos” estrangeiros (de Radiguet a Bukowski, passando pelos autores da beat generation). Catatau já fora publicado numa edição independente, de forma precária, circulando apenas entre amigos, como lembra a poeta Alice Ruiz, mulher de Leminski por 20 anos, na apresentação de Toda Poesia. Em 1983, quando saiu Caprichos & Relaxos pela Brasiliense, Leminski já tinha três livros de poesia publicados, além de Catatau. Produções independentes, restritas ao mercado curitibano, os livros se empilhavam pela casa do poeta à espera de compradores, até que as novas edições pela editora paulistana chamaram a atenção de músicos populares.

Caetano Veloso foi um deles. O cantor e compositor baiano acabou gravando Verdura, abrindo um novo mercado para a poesia do curitibano, que viria a ser parceiro de Arnaldo Antunes e outros músicos. O professor de Literatura e compositor José Miguel Wisnik diz, no posfácio de Toda Poesia, que Leminski “sonhava também com a cadência espraiada do refrão em massa”, encontrando em Antunes “a sua perfeita tradução, isto é, a correspondente aliança da poesia e do livro – marginal e de vanguarda, informal e formalista – com a linguagem da canção pop”.

Principalmente devido a essa aliança, Leminski foi duramente criticado por intelectuais conservadores, entre eles o também poeta Bruno Tolentino, que, definindo-o como um “poeta-piada”, de “dicção rala e ideias curtas”, acusou-o ainda de “macaquear a gagueira de toda uma leva de quase-autores”, ao seguir a rota dos modernistas da Semana de 22 e rezar pela cartilha dos concretistas. A dicção poética de Leminski, atesta Wisnik, pode estar relacionada à tradição moderna oswaldiana ou ter bebido na fonte da poesia concreta, deglutindo ainda o coloquialismo da poesia marginal. Entretanto, para entender o poeta curitibano é preciso não sucumbir ao estereótipo como o fez Tolentino – ao chamar Leminski de tocador de “berimbau de barbante”, dando a entender que seu arco e sua lira eram frouxos.

Tolentino não reconheceu em Leminski aquilo que Haroldo de Campos identificou no jovem poeta: uma poesia lírica rigorosamente construída e amalgamada com a canção trovadoresca. A professora de Literatura Leyla Perrone-Moisés, num texto republicado em Toda Poesia, que reúne todos os livros de poesia de Leminski, parte igualmente em defesa do poeta ao destacar que o “samurai malandro” (como ela o chamava carinhosamente) não produz jogos de palavras por simples graçola metaconcreta. Ele foi, sim, um formalista, embora não um poeta de gabinete, diz ela. Um poeta “mestiço e antropófago”, que sonhou ser Rimbaud e acordou como um provinciano a fazer haicais na terra da saúva gorda, como ele mesmo previra no poema Dança da Chuva.

Morto poucos meses antes de completar 45 anos, de cirrose hepática, Leminski sempre preferiu escrever poemas breves, especializando-se no haicai, forma poética surgida no século 16 e intimamente ligada ao taoismo e à filosofia espiritualista dos mestres zen-budistas. Forma concisa de poesia, o haicai também se adaptava perfeitamente às publicações alternativas dos anos 1970, artesanais e típicas da contracultura, movimento do qual participou Leminski sem, contudo, manter contato com poetas marginais, embora sempre evocasse o nome do tropicalista Torquato Neto como referência.

A filosofia e a poesia orientais, porém, ocupavam o centro de suas preocupações. Estudioso da língua japonesa, ele escreveu uma biografia de Bashô, o grande criador de haicais. Leminski era também fascinado pela figura de Trotski, de quem foi biógrafo (Leon Trotski – A Paixão Segundo a Revolução), e admirador do líder sindicalista polonês Lech Walesa (seu grande bigode, também parecido como o de Nietzsche, foi adotado por Leminski). Poliglota, ele falava e escrevia em polonês, além de outras línguas, inclusive latim e grego. Mas não ostentava publicamente essa erudição. Era, sim, falante, divertido e seu discurso, às vezes confuso, parecia desestruturado por misteriosa intervenção de um monstro como Occam, o primeiro personagem semiótico da ficção brasileira, que destrói a lógica cartesiana do herói de Catatau. Leminski foi professor de cursinho pré-vestibular. Estava acostumado a falar pelos cotovelos e seus interlocutores mal o acompanhavam. Foi, aliás, durante uma aula sobre a invasão holandesa de Pernambuco que lhe veio a ideia de colocar Descartes no horto tropical do palácio de Maurício de Nassau em Olinda, estupefato diante da fauna e da flora brasileiras.

À meditação zen ele contrapôs a verborragia filosófica que transborda em Catatau. Na poesia, Leminski encontra a síntese, o equilíbrio necessário para abordar fatos dramáticos de sua vida pessoal – como a morte de seu primeiro filho, Miguel, ainda jovem, ou sua inclinação para o álcool. Em desequilíbrio, ele se vê no interior de um táxi, com o corpo encharcado por dez conhaques, a atravessar uma São Paulo invernal à espera da primavera – como no poema Mallarmé Bashô, no qual revela outro ramo de sua filiação literária além de Joyce (Finnegans Wake) e Haroldo de Campos (Galáxias): o simbolista francês Stéphane Mallarmé. Ao contrário deste, Leminski não aspirava ser a explicação órfica da condição humana, mas a força de sua melodia tem, sim, a premonição do hipertexto da condição internética, outro ponto de contato com a poesia visionária de Mallarmé, que chegou a trabalhar visualmente seus poemas, como o curitibano faria mais tarde (no poema Lua na Água, por exemplo).

De todas as observações feitas por especialistas em sua obra na edição de Toda Poesia, chama a atenção a da viúva do poeta, Alice Ruiz, sobre a ressonância da formação religiosa de Leminski em sua vida intelectual. Seminarista no Mosteiro de São Bento, a clausura não durou muito, mas o amor pelo conhecimento permaneceu por toda a vida, lembra a poeta no texto de apresentação. Ao deixar o mosteiro, como o monge do livro de Hermann Hesse (Narciso e Goldmund), ele partiu em busca da experiência mundana para traduzir a angústia da vida moderna numa ficção que, antes de ser vanguardista, é o puro retrato desse impasse em forma poética. Como Petrônio, ele foi buscar nas ruas as palavras que faltavam para elaborar sua vingança retórica contra o modelo clássico.

No rastro da poesia, editoras relançam biografia e romance

O lançamento da reunião, num único volume, dos livros de poemas de Paulo Leminski deve despertar o interesse dos leitores pela história do escritor. Publicada em 2001 pela Record, a biografia Paulo Leminski – O Bandido Que Sabia Latim, de Toninho Vaz, ainda está à venda, mas sua quarta edição – com fotos novas e outras mudanças – sairá entre junho e julho pela Nossa Cultura. Outros gêneros experimentados por ele também devem merecer atenção. Catatau, romance lançado em 1975, cuja importância rivaliza com sua obra poética, foi reeditado pela Iluminuras em 2010 e segue disponível em algumas poucas livrarias. Mas uma nova tiragem será distribuída até o fim do mês. Reeditado em 2011 também pela Iluminuras, Agora É Que São Elas – romance de 1984 – pode ser encontrado nas principais livrarias. (Colaborou Maria Fernanda Rodrigues)

Leia poemas do livro
Poema de Paulo Leminski (Do livro Toda Poesia, Companhia das Letras)

sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas
não quis a prosa
apenas a ideia
uma ideia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma
uma poesia porosa

(in: caprichos & relaxos , p. 80)

aviso aos náufragos
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

(in: distraídos venceremos , p.175)

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra

(in: la vie en close , p. 284)

a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você
1988

(in: o ex-estranho, 352)

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“Telas de Paulo Pasta são exibidas em Ribeirão Preto”

Matéria de Antonio Gonçalves Filho para o Estadão:

RIBEIRÃO PRETO – São pinturas de pequeno formato – de dimensões liliputianas mesmo – que jamais saíram do ateliê do pintor Paulo Pasta. Elas são apresentadas pela primeira vez numa galeria de Ribeirão Preto, a Adearte (Rua João Penteado, 920), que abre hoje, às 20h30, uma exposição com telas pertencentes à coleção particular do artista. A mostra cobre um período correspondente aos seus 20 últimos anos de produção. Na época da primeira, Pasta esgotara uma série que lidava com a sugestão de objetos arcaicos “redescobertos” sob camadas espessas de tinta – escavadas como num processo quase arqueológico – e começara uma outra, em que a cera deixava gradativamente de ocupar o papel principal e juntava-se ao óleo para sugerir o chão do ateliê do artista. Apelidada de “cacos”, a série, de figuras indefinidas, confirmava a superposição entre figura e fundo que caracterizou os primeiros trabalhos de Pasta.

Paralelamente à série dos “cacos”, o pintor desenvolvia, em 1992, experiências figurativas que tinham a ver com uma sugestão de volume, surgindo daí figuras como colunas, vigas e piões. São elas que dominam a mostra, que marca também o lançamento do livro A Educação pela Pintura (Editora Martins Fontes, 184 págs., R$ 45). Essas figuras, que nada mais eram do que pretextos para a pintura, à maneira das garrafas de Morandi, seriam posteriormente retrabalhadas em telas de grandes dimensões, em outro contexto e outra época. A evocação do objeto real, embora plena de memória afetiva, levaria a um outro estágio da pintura de Pasta , em que a forma e o monocromatismo cederiam espaço à cor como protagonista dessa história – uma das mais originais e marcantes na arte brasileira.

Dois pintores do universo afetivo de Pasta, Morandi e Rothko, foram importantes nesse período de transição do império das formas para o protagonismo cromático. O crítico Paulo Venâncio Filho já chamara a atenção, no livro sobre o pintor ( Cosac Naify), para as semelhanças e diferenças na abordagem da cor por Pasta, Morandi e Rothko. Se o último prescindia da história para construir seu cromatismo, a pintura de Pasta está ancorada nos mestres do passado. O rosa presente nas telas mais recentes – e em algumas pequenas pinturas da mostra – é o rosa dos renascentistas italianos, não a cor da sociedade industrial de Rothko. As formas que se juntam e sustentam de modo recíproco, como observou Venâncio Filho, são evidentemente de inspiração morandiana – e o pequeno pião abóbora da exposição é uma prova disso. No entanto, Pasta extrai do objeto suas características reais para ficar com a lembrança de sua forma, no limiar entre presença e ausência.

As pequenas telas da mostra, diz Pasta, não são esboços nem estudos. Elas têm uma existência autônoma como pinturas acabadas. Naturalmente, por conviver com elas há 20 anos em seu ateliê, essas obras servem não só como referência histórica da evolução do trabalho do artista, mas como janelas da percepção, um olhar para dentro que impede escolhas arbitrárias e firma uma coerência raras vezes vista na obra de um pintor brasileiro. Pasta é, além de tudo, um professor, um mestre rigoroso com o próprio trabalho, que não se permite projetos paródicos e autorreferentes. Tanto que a autonomia dessas pequenas telas se deve ao desejo de evitar a serialização como meta. Forma e cor chegam juntas e, mesmo que sugiram séries, essas colunas, garrafas e cruzes – destituídas de seu significado simbólico, como as bandeiras de Jasper Johns – exigem do espectador um tempo maior que o usual para perceber a independência de cada pintura e sua densidade poética.

A evocação de um brinquedo de criança, como o pião, ou o bule com o copo e a colher da cozinha do ateliê (foto menor, abaixo do pião, nesta página) é tanto um esforço de preservação da memória do vivido como matéria construída. O curador da mostra, Nilton Costa, diretor do Museu de Arte de Ribeirão Preto e do 37.º Salão de Artes (Sarp) que se realiza na cidade, teve a sorte de contar com a assessoria museológica de Paulo Portela, do Masp. Por ser amigo pessoal de Pasta há quase 30 anos, Portela conhece bem a origem dessas pinturas, agrupadas por tema e ordem cronológica, num percurso quase didático da história do pintor, homenageado com essa mostra paralela do Sarp pela galerista Adelaide Silveira por sugestão de Ricardo Resende, diretor do Centro Cultural São Paulo.

Presente na coleção de João Figueiredo Ferraz, que há um ano inaugurou um instituto para abrigar seu acervo em Ribeirão Preto, Paulo Pasta mostra também na Adearte uma série de nove gravuras realizadas em 2009 com tiragem limitada de 60 exemplares. São serigrafias que traduzem o protagonismo da cor na obra mais recente do pintor paulista.

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“Ciclo de conferências reúne pensadores para debater o mundo sem utopias”

Matéria de Antonio Gonalves Filho publicada no site do Estadão:

Basta passar os olhos pelas páginas dos jornais para constatar que estamos diante de uma mutação antropológica. O descontrole da biotecnologia, a predominância do espírito bélico e a militarização da sociedade, o consumo elevado a um patamar patológico e drásticas mudanças culturais provocadas pela globalização certamente contribuíram para a criação de um novo ser que deve mudar o futuro da forma que o imaginávamos. Foi pensando nisso que o filósofo Adauto Novaes propôs a 24 intelectuais – brasileiros e estrangeiros – que refletissem sobre o tema O Futuro Não É Mais o Que Era. Há três meses, reunidos em Tiradentes, Minas Gerais, eles participaram de um brainstorm de nove horas de duração para imaginar como seria o futuro.

Desse caldeirão saíram ideias que apontam para a estrada da distopia e rendem agora um seminário, que o Sesc Vila Mariana abriga a partir do dia 16 de agosto (e o Museu de Arte Moderna do Rio, a partir do dia 20). O professor de História da Arte Jorge Coli, por exemplo, acha que “atravessamos uma fase conservadora e acomodada”, apesar da explosão da pornografia na internet. Quais serão as consequências futuras? Uma sexualidade mais livre ou mais perversa? O filósofo Jean-Pierre Dupuy concluiu que “vivemos agora sob a sombra de catástrofes futuras”. Elas talvez venham a provocar o desaparecimento da espécie, segundo o pensador francês. De nossa civilização, “a única da História que não se orienta por nenhum valor transcendente”, como assina a filósofa Olgária Matos, talvez não sobre mesmo nenhum vestígio. De qualquer modo, o futuro ainda não chegou e vale discutir sobre ele.

O seminário Mutações: O Futuro Não É Mais o Que Era terá 24 palestras de grandes nomes do cenário nacional e internacional. Entre os convidados do encontro, que segue até outubro, há veteranos como o cientista político e ex-ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet, mas também representantes da nova geração, como o professor de Filosofia da Universidade de Paris-Nanterre, Elie During, que vai falar sobre o “retrofuturismo”, fenômeno que marca o cinema, a arte, a moda e, especialmente, a literatura desde que William Gibson e Bruce Sterling (em The Difference Engine, publicado nos anos 1990) criaram o termo “steampunk” para afirmar que o computador foi inventado na era vitoriana, cruzando o motor a vapor e a calculadora de Babbage. During vai analisar como o retrofuturismo está, na verdade, nos falando do presente retroprojetado.

“O retrofuturismo é um dos grandes problemas que surgem com o fim das utopias”, observa o organizador do seminário Adauto Novaes, que há oito anos realiza em parceria com o Sesc o ciclo de conferênciasMutações, dedicado a investigações filosóficas sobre o século em que vivemos. O último foi realizado no ano passado e adotava como guia o pensamento do suprematista russo Malevitch, que considerava a preguiça superior ao trabalho, isso há um século, antes que todos trabalhassem mais que o necessário nos dias que correm. Elogio à Preguiça, o livro com as conclusões do ciclo (que tem basicamente os mesmos participantes deste seminário), será lançado no dia de abertura do seminário O Futuro Não É Mais o Que Era.

O título, revela Novaes, lhe foi sugerido pela leitura do poeta simbolista francês Paul Valéry (1871-1945). Ao dizer que o devir não é mais o que era, o autor de L’Ange, segundo o organizador do ciclo, “estava apenas reconhecendo que as imagens que tínhamos do futuro perderam sentido”. Assim, para responder à pergunta “para onde vamos?”, o ciclo convocou pensadores capazes de falar sobre a natureza do tempo, investigar as mitologias criadas sobre ele e mostrar como a tecnociência, a biotecnologia e a informática fizeram os videntes abdicar do posto de oráculos. O físico Luís Alberto Oliveira, doutor em cosmologia, até por isso, vai abordar em sua conferência desde a teoria da relatividade de Einstein até a literatura de Jorge Luis Borges, para tratar justamente da identificação que seres como nós temos com o tempo a ponto de criar com ele uma relação simbiótica (o escritor argentino costumava dizer que o tempo é a substância da qual era feito).

Certo é que, a exemplo do anjo de Valéry, talvez entremos no futuro de costas, vendo apenas catástrofes e ruínas, lembra Novaes, que não se mostra tão pessimista em relação a ele. Lamenta, sim, que “o espírito tenha se tornado uma coisa supérflua” em nossa era tecnológica. Se o tempo é ficção, diz o organizador, não pensar sobre ele seria uma tragédia real. Há quem deva propor, inclusive, um insólita tarefa aos participantes, como o editor póstumo de Gilles Deleuze, o doutor em teoria da literatura David Lapoujade, outro dos participantes do ciclo. Para ele, ainda dá tempo de desprogramar o futuro, alternativa do novo tipo de totalitarismo que se anuncia no horizonte da sociedade do espetáculo e do consumo.

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